Princípio da legalidade tributária: aplicabilidade e mitigação de efeitos
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
A aplicabilidade do texto constitucional estatizado no primeiro artigo do Título II, Capítulo I, sobre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, estende-se para o âmbito do Direito Público, em especial no Direito Tributário, possuindo, porém, um viés restritivo.
Nesse sentido, os artigos 150 e 151 da Carta Constitucional, bem como os artigos 96 a 100, da Lei n 5.172/1966 estabelecem as Limitações ao Poder de Tributar do Estado.
O Estado, em sua soberania, tem o poder de exercer a tributação, através de seus entes federativos, União, Estado, Municípios e Distrito Federal. Essa tributação, no Estado Democrático de Direito, depende, no entanto, de consentimento da população, seja diretamente, através do voto, ou indiretamente, por meio de representantes legais.
Assim, essas limitações foram criadas com a finalidade de obstar os efeitos de um Estado leonino sobre a população, vedando, dentre outros, a criação e majoração de tributos sem lei anterior e o efeito confisco (incisos I e IV, artigo 150, CF/88).
As disposições da Constituição da República foram reproduzidas e ampliadas no Código Tributário Nacional, o qual, em seu artigo 97, estabelece as demais hipóteses de legalidade estrita ou legalidade tributária admitidas no ordenamento jurídico brasileiro.
A concepção de legalidade tributária advém da Magna Carta de 1215, durante o reinado do Rei João Sem Terra (Inglaterra, 1199-1216), o qual, pressionado por nobres, camponeses e representantes eclesiásticos, após suas sequenciais perdas de possessões e desgastes políticos que resultaram na queda do Império Angevino, viu-se compelido a acatar.
Foi estabelecido, dentre outras disposições, que a alteração de leis e instituição de tributos precederia a aprovação do projeto por um conselho composto de representantes do Clero e da nobreza.
Assim, fica estabelecida a ideia de “consentimento popular”, no qual o tributo somente será legítimo se previsto em lei. Portanto, aquelas disposições que não atravessaram o devido processo legislativo estariam eivadas de inconstitucionalidade.
Mais futuramente, durante a Guerra de Independência ou Revolução Americana de 1776, que resultou na proclamação de independência das Treze Colônias, formando o Estado soberano americano (Estados Unidos), ocorreu à transmissão do slogan “No taxation without representation”, que, no vernáculo inglês, traduz-se por “Nenhuma tributação sem representação”.
Essa expressão se tornou símbolo de garantia dos direitos dos colonos norte americanos sobre um governo déspota inglês, na medida em que exigia a participação colonial nas pautas legislativas de interesse da futura nação estado unidense.
Ambos eventos históricos, promulgação da Magna Carta de 1215 e Revolução Americana de 1776, foram fundamentais para a criação e desenvolvimento do princípio da legalidade estrita ou legalidade tributária que se conhece hoje.
A tributação, nesse sentido, ocorre somente após a ocorrência e estabilização de uma hipótese jurídico tributária. Esta situação se materializa com a identificação de uma hipótese de incidência de um tributo, o qual, conforme a previsão legal da norma instituidora, constitui um fato gerador, impositor de obrigações mútuas ao Estado (sujeito ativo) e ao contribuinte (sujeito passivo).
Nas palavras de Sacha Calmon[1], “o direito tributário regula e restringe o Poder do Estado de exigir tributos e regula os direitos e deveres dos contribuintes, isonomicamente. Seu objeto é a relação jurídica travada entre o Estado e o contribuinte”.
Ainda, os ensinamentos de Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro, em sua obra conjunta com Helton Kramer Lustoza e Marcus de Freitas Gouvêa, “Tributos em Espécie”[2]:
Não é forçoso salientar que for principalmente graças ao quadro de opressão fiscal analisado que os camponeses e os grandes senhores de terras compeliram o Rei “João Sem Terra”, de 1215, a assinar a Magna Carta Inglesa, primeiro grande marco do Constitucionalismo. Ao lado de alguns outros esparsos eventos, esse foi também um dos momentos precursores da ideia de tributação consentida. A partir daqui, a Tributação, de relação de poder, começou, embora lentamente, a transformar-se numa relação jurídica, regida por um conjunto de regras e princípios limitadores dos abusos dos soberanos.
[...]
Atividade Financeira do Estado é o conjunto de medidas levadas a efeito pelo Estado para obtenção, gestão e aplicação dos recursos necessários à satisfação de interesses coletivos.
Dentre as medidas que integram o conceito de Atividade Financeira, destaca-se a arrecadação e cobrança de tributos juntos aos particulares (tributação). Trata-se da mais importante forma de obtenção de receitas.
A relação de tributação existente entre o Estado e os particulares, quando não regulada por um corpo próprio de normas jurídicas, configura clara relação de poder. Referida relação de poder costuma levar ao abuso e, consequentemente, à insatisfação das camadas sociais prejudicadas.
Dessume-se de todo o exposto, que a legalidade é questão de segurança jurídica, no qual o Poder Executivo, de regra, não participa da formação dos tributos normativamente, para evitar discriminações e variações de acordo com a necessidade de caixa.
Por esses motivos, são matérias privativas de disposição em lei os elementos estruturantes dos tributos: instituição, extinção, majoração e redução; definição de fato gerador, base de cálculo, parâmetro de alíquotas, sujeito passivo e penalidades (cominação e redução); bem como hipóteses de suspensão, exclusão e extinção de créditos. A lei ordinária, neste ponto, ganha destaque, pois é ela quem, de regra, cuida desta atividade.
A lei complementar, por sua vez, tem evidência naquilo que toca o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF, artigo 153, VII, CF/88), Impostos Residuais (artigo 154, I, CF/88), Empréstimos Compulsórios (artigo 148, caput, CF/88) e Contribuições Residuais da Seguridade Social (artigo 194, §4º c/c 154, I, CF/88).
A mitigação desta legalidade é reservada à atuação superveniente nos valores das alíquotas de determinados tributos. Neste caso, o Poder Executivo possui a liberdade de modificar seus valores de acordo com um parâmetro pré-fixado em lei.
A regra da mitigação foi tratada pelo constituinte no artigo 153, §1º, da CF/88, atingindo os seguintes impostos federais: Imposto de Importação (II, artigo 153, I), Imposto de Exportação (IE, artigo 153, II), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI, artigo 153, IV) e Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF, artigo 153, V).
Ainda, a Emenda Constitucional nº 33/2001, ampliou esse rol para abarcar também a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE Combustíveis, caráter federal, previsto no artigo 177, §4º, I, “b”, CF/88) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias em Combustível (ICMS Combustível, caráter estadual, previsto no artigo 155, §4º, IV, “c”, CF/88).
O motivo da mitigação da legalidade no que toca a alíquota desses tributos se dá pela extrafiscalidade dos mesmos e da necessidade de controle de mercado.
Isso porque os tributos extrafiscais, além de possuírem a função de arrecadar fundos para os cofres públicos, ainda tem o objetivo de regular o mercado e a economia do país.
Conceitualmente, extrafiscalidade trata de instrumento financeiro empregado pelo Estado para estimular ou inibir condutas, em especial mercadológicas, a fim de garantir a arrecadação e o crescimento econômico da nação.
Diante dessa natureza essencialmente regulatória, o Poder Executivo tem a liberdade de manejar suas alíquotas, numa variação pré-estabelecida em lei. Isso garante autonomia e maior liberdade ao mercado, na medida em que desprende as atividades financeiras e comerciais das restrições de um processo legislativo lento e desatualizado.
Além disso, essa liberdade retrata o desejo do constituinte de descentralizar o poder, proporcionando efetiva autonomia aos entes federados, que exercerão, à sua proporção, o controle da economia.
Desse modo, pode-se concluir que a legalidade tributária ou legalidade estrita e sua respectiva mitigação de efeitos são instrumentos constitucionais que visam garantir a eficiência e autonomia dos entes federativos, cada um em seu âmbito e sua esfera de competência, atuando sobre aqueles tributos que possuem função garantidora econômica e financeira do Estado.
BIBLIOGRAFIA:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Brasília, DF: Senado: 1966.
CASTRO, Eduardo M. L. Rodrigues de; Lustoza, Helton Kramer; GOUVÊA, Marcus de Freitas. Tributos em Espécie. 5ª Ed., rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 25 a 30.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Editoral Forense, 2009, p. 34.
[1] COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Editoral Forense, 2009, p. 34.
[2] LUSTOZA, Helton Kramer; CASTRO, Eduardo Moreira Lima Rodrigues de; GOUVÊA, Marcus de Freitas. Tributos em Espécie. 5ª Edição, rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 25 e 30.
Escrito por:
Laís Amâncio de Queiróz Pereira. Advogada, atuante nas áreas do Direito Administrativo, Tributário e Cível. Vice Coordenadora no Núcleo de Estudos em Direito Administrativo – NAdm e membro do Núcleo de Estudos em Direito Tributário, ambos do Instituto de Estudos Avançados em Direito – IEAD. Pós-graduanda em Direito e Processo Tributário pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva – CERS. Acadêmica do curso de Bacharelado em Ciências Contábeis pela Universidade Paulista – UNIP; laisamancio@live.com. Está no Instagram como @amancio.lais
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