Transtorno do Espectro Autista e as dificuldades de acesso à educação
Recentemente, alguns casos que trataram de crianças autistas vieram à tona. Duas crianças, vivendo a mais de 2.000km de distância, em contextos sociais distintos, mas com algo em comum: o cerceamento do direito à educação.
Na data de 12 de fevereiro de 2020 foi noticiado que uma criança de 5 (cinco) anos, residente na cidade de João Pessoa-PA, após matriculada no ensino fundamental, foi impedida de frequentar a escola, por ser diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista. A justificativa da instituição pública de ensino se fundou no fato de que a criança precisava de um “cuidador”, o que inviabilizaria sua atenção adequada, já que a escola não dispunha do profissional.
No mesmo mês de fevereiro, em Patos de Minas-MG, uma criança com a mesma faixa etária, também diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista, foi impedida de “repetir de ano” e continuar na educação infantil pela diretoria da escola particular na qual estuda.
A recusa se deu após a equipe multidisciplinar que atende a criança concluir que não seria adequada a sua aprovação para o 1º ano do ensino fundamental, por ainda não ter desenvolvido habilidades necessárias para o avanço de ano escolar. A escola, para justificar a negativa do pedido dos pais do aluno, afirmou que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação[1] impede a reprovação de crianças com 4 e 5 anos de idade.
Apesar de casos assim serem comuns, não são admissíveis pelo sistema jurídico brasileiro. Inicialmente, porque a Constituição Federal, notadamente nos artigos 205 e 206, garante que a educação é direito de todos e obrigação do Estado, sendo a igualdade de acesso e permanência uma determinação constitucional.
Hábil a integrar as determinações constitucionais, a legislação infraconstitucional tratou de esclarecer a forma de aplicação do Direito Social, que disciplina o acesso à educação de maneira específica.
Iniciando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que impõe, por ememplo, a educação básica obrigatória para crianças entre 4 e 17 anos (art. 4º, inciso I), o atendimento educacional especializado e gratuito aos educandos com deficiência ou transtornos globais (art. 4º, inciso III), a necessidade de plano de ensino personalizado para cada estudante e a disposição de vagas nas escolas públicas de educação infantil, que sejam próximas da residência do aluno (art. 4º, inciso X).
A mesma lei direciona capítulo específico para o que chama de educação especial, como sendo aquela direcionada a educandos com deficiência ou transtornos globais. Nele é previsto que haverá serviços de apoio e ensino especializado na escola regular para atender às peculiaridades de cada educando (art. 58, § 1º), sendo necessária a adequação do currículo, de métodos e técnicas, bem como da terminalidade específica para aqueles alunos que não puderem atingir o nível exigido para o ensino fundamental (art. 59, I e II).
Ademais, no mesmo artigo, a lei dispõe que os professores responsáveis pelas crianças com transtornos ou deficiência devem ser especializados e capacitados para a integração dos alunos, bem como possuem, junto com a escola, a obrigação de capacitar os alunos com deficiência para a efetiva integração na sociedade (art. 59 II, III, IV).
Não obstante, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, ao estabelecer que o ensino é livre à iniciativa privada, impõe requisitos à liberalidade, devendo as instituições de ensino cumprir as normas gerais de educação nacional e possuir capacidade de autofinanciamento (art. 7º).
Quando se trata de inclusão, em 2015 o Brasil instituiu a Lei n. 13.146, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, normativa que foi inspirada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual o Brasil foi signatário e ratificou, na forma prevista no §3º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, ou seja, possuindo status constitucional.
Apesar do Transtorno do Espectro Autista, por si só, não se enquadrar como deficiência, a ele deve ser aplicada a Lei de Inclusão, de modo que para as vistas da lei, a pessoa com Transtorno do Espectro Autista é uma pessoa com deficiência (art. 1º, § 2º da Lei n. 12.764/2012).
A Lei de Inclusão dispõe capítulo especial que trata do Direito à Educação. Entre os artigos 27 e 30, além de reforçar as disposições constitucionais e da LDB acerca do tema e determinar parâmetros específicos para a efetivação do direito à educação acrescenta importante determinação: a de que a educação se dará de forma a “alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem” (art. 27), sendo dever não somente do Estado e da família, mas também da “comunidade escolar e sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação”.
Por fim, temos em nosso ordenamento jurídico a Lei 12.764/2012, que prevê a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A declinada lei estipula como direito básico da pessoa com TEA o acesso à educação, esclarecendo que no caso de comprovada necessidade, o aluno incluído nas classes comuns de ensino regular terá direito a acompanhante especializado (art. 3º, IV, parágrafo único).
Remontando aos casos anteriormente tratados, a criança de João Pessoa-PB teve seu direito à educação cerceado, em razão da escola não possuir o acompanhante especializado, do qual a Lei 12.764/2012 determina. Nesse sentido, a administração pública descumpriu todas as normas acima dispostas, negando a aplicação de muitos anos de evolução dos direitos sociais esculpidos na Constituição Federal.
Do mesmo modo, a criança de Patos de Minas-MG também teve seu direito à educação mitigado quando lhe foi negado cursar a fase educacional que mais atendia às suas necessidades de evolução social, psicomotora, interpessoal, sensorial e intelectual.
A conclusão, portanto, se direciona no sentido de que todas as crianças que possuem o TEA, seja qual for sua realidade social e familiar, passam por empecilhos na vida educacional, dificuldades estas que apenas serão vislumbradas no caso concreto, já que cada pessoa no aspecto do TEA possui necessidades diferentes, devendo, assim, o atendimento ser único e específico para cada criança.
Com efeito, respeitadas e cultivadas as especificidades de cada criança, com foco no interesse de seu melhor desenvolvimento, aplicando o princípio constitucional da isonomia, todas os artigos, leis, estatutos e convenções apenas servem como mecanismos para ajudar na promoção da inclusão já consagrada em nosso ordenamento jurídico.
Escrito por Victória Fernandes Carneiro, Advogada, graduada pela Universidade Católica de Goiás, pós-graduanda em Direito Civil, Processual Civil e Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada à Saúde, atuante na área de Direito Civil com foco no Direito da Saúde e Consumidor.
Disciplinam o tema:
Constituição Federal
Lei n. 8.069/1990
Decreto n. 7.611/2011
Lei n. 12.764/2012
Lei n. 13.146/2015
Lei n. 9.394/ 1996
Fontes:
Victória Fernandes Carneiro, Advogada, graduada pela Universidade Católica de Goiás, pós-graduanda em Direito Civil, Processual Civil e Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada à Saúde, atuante na área de Direito Civil com foco no Direito da Saúde e Consumidor.