O testamento e suas características no ordenamento brasileiro
Por muito tempo, a figura do testamento esteve associada muito mais aos filmes e séries norte-americanos do que ao cotidiano do brasileiro. Contudo, conforme estudo divulgado pelo Colégio Notarial do Brasil[1], no período de 2015 a 2017, o número de pessoas que procuraram os cartórios da região interessadas em realizar um testamento público aumentou em 42% (quarenta e dois por cento).
Dentre os principais motivos apontados pelo estudo para o aumento da procura pelo serviço, está a vontade dos testadores em evitar possíveis desavenças entre os herdeiros e beneficiários. É possível verificar a partir da situação narrada que o testamento é o instrumento pelo qual a sucessão testamentária se materializa, contudo, como será narrado nas linhas a seguir, a legislação e a doutrina estabelecem diversos pontos que devem ser observados para a sua validação.
1.1 - A Sucessão testamentária
O direito brasileiro caracteriza como herança todo aquele patrimônio deixado por um indivíduo ao falecer, que se transmite, com a abertura da sucessão, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do Código Civil. Em outras palavras, por força da adoção do princípio de Saisine pelo ordenamento jurídico, a transmissão dos bens patrimônio do de cujus aos seus herdeiros ocorre de forma imediata após o seu falecimento.
Nessa perspectiva, adentrando ao tema central da nossa discussão, essa sucessão hereditária pode ocorrer de duas formas: a legítima (em virtude da Lei) e por disposição de última vontade ou sucessão testamentária. De forma simplificada, a sucessão legítima é a transmissão dos bens àqueles que a Lei indica como sucessores do autor da herança, nos termos do art. 1.788 do Código Civil, veja-se:
“Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.”
(Grifou-se)
Ou seja, caso a vontade do de cujus não esteja manifestada no momento do seu falecimento, essa omissão será suprimida pela ordem estabelecida pela legislação: aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único), ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; ao cônjuge sobrevivente; aos colaterais, nos termos do art. 1.829 do Diploma Civil.
A sucessão testamentária, como o próprio nome indica, é aquela realizada de acordo com a manifestação unilateral do autor da herança, materializada na figura do testamento, o qual deve atentar-se às normas previstas pelos arts. 1.857 a 1.900 do Código Civil. É essencial pontuar, desde logo, que caso existam herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade disponível da herança.
Não obstante, José da Silva Pacheco (2018)[2] esclarece que o testar, como ato de última vontade, só pode ser exercido em relação à parte excedente da legítima, que pertence de pleno direito aos herdeiros necessários, se houver. A legítima funciona como uma espécie de reserva legal, não podendo ser alterada nem por doação em vida, cláusula testamentária ou mesmo por decisão judicial. Todavia, diante da inexistência de herdeiros até a terceira classe da vocação hereditária, não há o que se falar em legítima.
Dito isso, respeitadas às normas legais, tem-se que:
“Pelo testamento, podem-se instituir herdeiros ou legatários, ou seja, sucessores a título universal ou singular. Na sucessão universal, transmite-se a herança como um todo, ou uma sua fração aritmética; na singular transmitem-se bens individuados. No primeiro caso, por causa de morte, o adquirente é o herdeiro; no segundo, é o legatário. Portanto, o herdeiro sucede a título universal, enquanto o legatário sucede a título singular, motivo por que tem de pedir a entrega da coisa legada e, por outro lado, não responde pelas dívidas da herança.”
(PACHECO, 2018, pg. 234).
Assim, de forma simplificada, se o testamento prevê a divisão da totalidade dos bens em meras frações ou quotas respectivas, sem a sua caracterização, o beneficiário será nomeado de herdeiro e a sucessão será universal. Contudo, caso a transmissão dos bens seja de forma específica e determinada de cada objeto patrimônio do Espólio, os agentes serão intitulados como legatários e a sucessão passa a ser singular.
1.2 – Características Gerais do Testamento
A doutrina majoritária caracteriza o testamento como “um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, para depois de sua morte”[3]. Outra característica importante é que o testamento constituiu um ato solene e gratuito, uma vez que sua validade deve obedecer às formalidades descritas na legislação e não visa obtenção de vantagens para o testador.
No tocante à capacidade ativa, o art. 1.857 do Código Civil dispõe que “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens ou de parte deles, para depois de sua morte”. Desse modo, assim como qualquer outro negócio jurídico, deve-se respeitar aos requisitos de capacidade geral prevista pelos arts. 3º e 4º do Diploma supracitado:
“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência).
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)”
Já a capacidade passiva, ou seja, quem pode adquirir o que foi deixado por testamento, são capazes todas as pessoas naturais ou jurídicas existentes ao tempo da morte do testador, conquanto não sejam consideradas incapazes (arts. 1.798 e 1.799 do Código Civil).
Por fim, ressalta-se ainda que o Codex Civilista proíbe expressamente o testamento simultâneo, recíproco e correspectivo, os quais buscam beneficiar reciprocamente ou mesmo uma terceira pessoa (art. 426)
1.3 – Formas testamentárias
O doutrinador Flávio Tartuce (2020)[4] esclarece que o testamento admite um rol taxativo de formas ordinárias: o testamento público; o testamento cerrado; e o testamento particular. Além disso, são admitidas também as formas especiais, a saber: o marítimo; o aeronáutico; e o militar, todos de caráter extraordinário, excepcional e emergencial.
À luz da interpretação do art. 1.887, não se admitem outros testamentos especiais além dos contemplados neste Código Civilista e nem mesmo a conjunção dessas modalidades expressas, sob risco de nulidade. Nesses termos, encontram-se descritos, nos tópicos a seguir, as formas testamentárias admitidas pelo ordenamento brasileiro:
1.3.1 – Testamento Público
O testamento público está previsto nos arts. 1.864 a 1.867 do Diploma Civilista, os quais estabelecem os requisitos essenciais para a sua validade, como: lavração em cartório por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, na presença de duas testemunhas.
1.3.2 – Testamento Cerrado
O doutrinador Flávio Tartuce (2020) esclarece que o testamento cerrado é aquele em que seu conteúdo permanece em sigilo até a morte do testador. O instrumento deve ser escrito pelo testador, ou por outra pessoa, a seu rogo, e por aquele assinado, será válido se aprovado pelo tabelião ou seu substituto legal, desde que lavrado em presença de duas testemunhas.
1.3.3 – Testamento Particular
O testamento particular é bastante simples, devendo ser elaborado na forma escrita e assinado pelo próprio testador. A particularidade é que deverá ser lido em voz alta perante três testemunhas, que também assinarão o presente documento, seguindo a Lei conforme arts. 1.879 a 1.880 do Código Civil.
1.4 – As formas especiais testamentárias
A doutrina moderna preleciona que o nosso sistema jurídico encontra inspiração no Código Civil italiano, o qual prevê diversas necessidades e situações de sucessão previstas com a modernização dos meios de transportes marítimos e aéreos[5].
1.4.1 – Testamento Marítimo e Aeronáutico
O Código Civil preconiza que o testamento marítimo ou mesmo o aeronáutico podem ser feito por quem estiver em viagem, a bordo de navio nacional, de guerra ou mercante, ou de aeronave militar ou comercial, perante o comandante, em presença de duas testemunhas, por forma que corresponda ao testamento público ou ao cerrado (art. 1.888 do Diploma Civil).
O registro deverá ser feito no diário de bordo e ficará sob a guarda do comandante, que o entregará às autoridades administrativas do primeiro porto ou aeroporto nacional. Ressalta-se ainda que o testamento não terá validade se, ao tempo em que se fez, o navio estava em porto onde o testador pudesse desembarcar e testar na forma ordinária. Da mesma forma, caso o testador sobreviva a viagem, o testamento caducará.
Em relação a forma, poderá ser pública ou cerrada, lavrado pelo próprio comandante ou a ele entregue, desde que assinado pelo testador, ou a seu rogo, e estejam presentes as duas testemunhas.
1.4.2 – Testamento Militar
O testamento dos militares e demais pessoas a serviço das Forças Armadas em campanha, dentro do País ou fora dele, assim como em praça sitiada, ou que esteja de comunicações interrompidas, poderá fazer-se, não havendo tabelião ou seu substituto legal, ante duas, ou três testemunhas, se o testador não puder, ou não souber assinar, caso em que assinará por ele uma delas (art. 1.893 do Código Civil).
Sobre a questão, Flávio Tartuce (2020) preleciona:
“A regra geral é que o testamento deve ser efetuado perante o comandante do destacamento, mesmo que em grau militar inferior em relação ao autor da herança. Imagine-se o eventual caso de um general ferido em combate, restando, no local, um capitão ou mesmo um sargento, que, no caso de falecimento, irá substituir o ferido de patente oficial superior. Não restam dúvidas de que esses assumirão, no momento, o encargo de oficial público. No entanto, em caso emergencial ao extremo, estando o ferido em hospital ou casa de saúde, poderá tal regra ser afastada, caso em que o testador formulará sua disposição de última vontade, na forma assemelhada à pública, perante o oficial médico ou o diretor do estabelecimento em que se encontra.”
(TARTUCE, 2020, pg. 458)
Diante da forma excepcional e extraordinária da forma especial testamentária, só será admitida no caso de impossibilidade de celebração do testamento público. Assim, se o testador souber escrever, poderá fazer o testamento de seu punho, contanto que o date e assine por extenso, e o apresente aberto ou cerrado, na presença de duas testemunhas ao auditor, ou ao oficial de patente, que lhe faça as vezes neste mister (art. 1.894 do Código Civil).
Portanto, conforme se observa, os casos elencados pela Lei como especiais são excepcionais em virtude da urgência em realizar o referido documento, possibilitando ao testador uma última oportunidade de manifestar a sua vontade.
Escrito por:
Letícia Marina da S. Moura é jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG), graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás - Uni-Goiás e especialização em curso em Direito Empresarial pela Faculdade Legale. É auxiliar jurídico na Dux Administração Judicial. Membro do núcleo de Direito Empresarial, Falimentar e Recuperacional (NEmp) do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).
[1] Cresce 42% o número de testamentos lavrados no Brasil nos últimos cinco anos. Associação dos Notários e Registradores do Brasil, 20 de outubro de 2017. Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/2017/10/19/cresce-42-o-numero-de-testamentos-lavrados-no-brasil-nos-ultimos-cinco-anos/. Acesso em: 01 jun 2020.
[2] Pacheco, José da Silva. Inventários e partilhas: na sucessão legítima e testamentária – 20. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.
[3] TARTUCE, Flávio. Direito civil v. 6: direito das sucessões. – 13. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
[4] TARTUCE, Flávio. Direito civil v. 6: direito das sucessões. – 13. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
[5] TARTUCE, Flávio. Direito civil v. 6: direito das sucessões. – 13. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Letícia Marina da S. Moura (@le.moura7) é jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG), graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás - Uni-Goiás e especialização em curso em Direito Empresarial pela Faculdade Legale. Membro do núcleo de Direito Empresarial, Falimentar e Recuperacional (NEmp) do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).