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O judiciário a ANS e o autismo, qual a direção a ser seguida?

Victória Fernandes
29/09/2020
Cada vez mais comuns são as demandas contra planos de saúde de pessoas com Transtorno do Espectro Autista na tentativa de conseguir tratamento eficaz e digno.

Cada vez mais comuns são as demandas contra planos de saúde de pessoas com Transtorno do Espectro Autista na tentativa de conseguir tratamento eficaz e digno. Por mais que o respectivo transtorno não seja eminentemente novo[1], o desenvolvimento de tratamentos eficazes, bem como a descoberta do funcionamento cerebral das pessoas com TEA, o que possibilitou intervenções mais efetivas, direcionou a uma maior procura recente pelos tratamentos e cobertura deles pelos planos de saúde.

Somada à novidade da disponibilidade de tratamentos efetivos, que buscam melhorar a qualidade de vida da pessoa com TEA, o sistema jurídico brasileiro, em razão de diversos movimentos da própria sociedade civil, e de acordos internacionais que buscam a efetivação de direitos humanos, se armou de normativas que visam garantir a dignidade da pessoa com TEA e o direito ao acesso e inclusão a todos os setores e serviços da sociedade, inclusive à saúde. Cita-se, como exemplo, A Convenção de Nova Iorque[2], A Lei Brasileira de Inclusão[3] e a Lei n. 12.764/2012[4].

Especialmente, a Lei n. 12.764/2012 dispõe que a pessoa com Transtorno do Espectro Autista não será impedida de participar de planos de saúde[5], em razão de sua condição de deficiência.

Por sua vez, a Lei de Inclusão determina que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação” (art. 4º), conceituando como discriminação “toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”.

Dessa forma, a obrigação de fornecimento de serviços de planos de saúde em igualdade pressupõe que sejam oferecidos os serviços de saúde de acordo com a necessidade da pessoa com transtorno do espectro autista, e não com base na necessidade de uma pessoa típica[6], sob pena de se tratar de discriminação.

Sob essa linha intelectiva, dentre outras fundamentações jurídicas, o Ministério Público Federal apresentou à Justiça Federal Seção Goiás uma Ação Civil Pública[7] contra a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar[8], que teve, dentre os objetivos, obrigar a Agência a retirar a limitação de consulta/sessão com psicólogia, terapia ocupacional e fonoaudiologia.

A limitação feita pela ANS advém de sua competência para regular os planos de saúde, de modo que estabelece uma lista de eventos e procedimentos em saúde que não podem ter a cobertura negada pelos planos de saúde, por se tratar de cobertura mínima.

No entanto, na prática da comercialização dos planos de saúde, a cobertura mínima se tornou cobertura máxima, o que necessitou da intervenção do Poder Judiciário que, em razão da função social do contrato, interpretou este rol como exemplificativo, de cobertura mínima. Isso significa que a cobertura dos planos de saúde não se limita aos eventos dispostos rol, devendo ser observado, no caso concreto, qual é a indicação médica de tratamento, posto que se o plano de saúde cobre a doença, deve cobrir o seu tratamento e quem tem a atribuição de fazer a escolha de qual tratamento é mais adequado ao beneficiário é o médico em conjunto com o paciente e não a operadora de planos de saúde[9].

No entanto, no que se refere ao tratamento multidisciplinar para o Transtorno do Espectro Autista, que envolve sessões com profissionais psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, o Tribunal de Justiça de Goiás, em interpretação à julgado do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 1679.190/SP)[10], tinha entendimento no sentido de que as sessões que ultrapassarem à quantidade limitada pela ANS deveriam ser arcadas em coparticipação, pelo beneficiário e operadora[11].

A interpretação, no entanto, que faz referência a internações psiquiátricas não é adequada, uma vez que o tratamento multidisciplinar para autismo é contínuo e necessitado por anos - na maioria dos casos - de modo que em nada se relaciona com as internações psiquiátricas, que têm cunho emergencial e excepcional[12]. Assim, se a coparticipação após 30 dias de internação psiquiátrica faz sentido, considerando que a regra é o curto prazo, o mesmo não se aplica ao tratamento multidisciplinar para TEA, que a regra é longo prazo, de modo que o posicionamento jurisprudencial do TJGO acerca da coparticipação nas sessões excedentes às limitadas pela ANS não é coerente com a realidade das pessoas com TEA.

Tal posicionamento, graças à Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, tende a mudar, uma vez que a ACP já logrou, em cumprimento provisório de sentença, a suspensão da limitação das sessões de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para os beneficiários de planos de saúde da limitação geográfica de Goiás[13].

A mudança de posicionamento se faz necessária pois, não havendo mais limitação para as sessões de tratamento multiprofissional, também não há que se falar em coparticipação (que era imposta após a quantidade anteriormente limitada), que se dava em razão da ausência de norma específica, em interpretação analógica à norma que não tratava especificamente de tratamento de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional.

Indício dessa mudança é notado pela recente decisão de tutela de urgência prolatada pela 15ª Vara Cível e Ambiental de Goiânia, que já com a fundamentação da sentença da Ação Civil Pública acima declinada determinou a cobertura completa do tratamento necessitado por criança com autismo, sem limitação e sem coparticipação, nos autos do processo n. 5438691-50.2020.8.09.0051.

Permanecer impondo a coparticipação ao tratamento multiprofissional ao qual pessoas com Transtorno do Espectro Autista necessitam seria esvaziar os efeitos da Ação Civil Pública que impôs à ANS a suspensão da limitação e negar a evolução do direito civil constitucionalizado brasileiro, que leva em conta a garantia da dignidade de grupos vulneráveis, com o objetivo de ter uma sociedade mais equânime, plural e justa.

Por Victória Fernandes Carneiro, Advogada, graduada pela Universidade Católica de Goiás, pós-graduanda em Direito Civil, Processual Civil e Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada à Saúde, atuante na área de Direito Civil com foco no Direito da Saúde e Consumidor.

 

[1] O termo “Autismo” foi cunhado pela primeira vez em 1906, pelo psiquiatra Plouller (ZANATTA et all, 2014).

[2] Promulgada pelo Decreto n. 6.949/2009 - Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.

[3] Lei n. 13.146/2015 - Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)

[4] Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990

[5] Art. 5º A pessoa com transtorno do espectro autista não será impedida de participar de planos privados de assistência à saúde em razão de sua condição de pessoa com deficiência.

[6] Neste artigo denomina-se “atípica” a pessoa com TEA e “típica” as pessoas que não contem com o transtorno.

[7] Ação Civil Pública 1005197- 60.2019.4.01.3500

[8] “autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde” (art. 1º) que tem “por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País” (art. 3º) – Lei n. 9,961/2000.

[9] AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. CIVIL (CPC/2015). CIVIL. PLANO DE SAÚDE NA MODALIDADE AUTOGESTÃO. RECUSA DE COBERTURA DE CIRURGIA PARA TRATAMENTO DE DEGENERAÇÃO DA ARTICULAÇÃO TEMPOROMANDIBULAR (ATM). DIVERGÊNCIA QUANTO À ADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO. INGERÊNCIA NA RELAÇÃO CIRURGIÃO-PACIENTE. DESCABIMENTO. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DESTA TURMA. APLICABILIDADE ÀS OPERADORAS DE AUTOGESTÃO. PRECEDENTE EM SENTIDO CONTRÁRIO NA QUARTA TURMA. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DESTA TURMA. 1. Controvérsia acerca da recusa de cobertura de cirurgia para tratamento de degeneração da articulação temporomandibular (ATM), pelo método proposto pelo cirurgião assistente, em paciente que já se submeteu a cirurgia anteriormente, por outro método, sem obter êxito definitivo. 2. Nos termos da jurisprudência pacífica desta Turma, o rol de procedimentos mínimos da ANS é meramente exemplificativo, não obstando a que o médico assistente prescreva, fundamentadamente, procedimento ali não previsto, desde que seja necessário ao tratamento de doença coberta pelo plano de saúde. Aplicação do princípio da função social do contrat3. Caso concreto em que a necessidade de se adotar procedimento não previsto no rol da ANS encontra-se justificada, devido ao fato de o paciente já ter se submetido a tratamento por outro método e não ter alcançado êxito. 4. Aplicação do entendimento descrito no item 2, supra, às entidades de autogestão, uma vez que estas, embora não sujeitas ao Código de Defesa do Consumidor, não escapam ao dever de atender à função social do contrato. 5. Existência de precedente recente da QUARTA TURMA no sentido de que seria legítima a recusa de cobertura com base no rol de procedimentos mínimos da ANS. 6. Reafirmação da jurisprudência desta TURMA no sentido do caráter exemplificativo do referido rol de procedimentos. 7. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (AgInt no REsp 1829583/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2020, DJe 26/06/2020)

[10] interpretação analógica à Resolução Normativa 424/17, art. 22, II em conjunto com a Lei n. 9.656/98, que determina o custeio em coparticipação dos dias excedentes à 30 (trinta) dias em internações psiquiátricas

[11] APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. APELAÇÃO CÍVEL, MANEJADA PELA COOPERATIVA RÉ. PACIENTE DIAGNOSTICADO COM O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA). INDICAÇÃO MÉDICA. FONOAUDIOLOGIA, TERAPIA OCUPACIONAL E PSICOLOGIA. ESPECIALISTAS EM ANÁLISE APLICADA DO COMPORTAMENTO (ABA). TRATAMENTO EM CARÁTER EXPERIMENTAL. NEGATIVA DO PLANO DE SAÚDE. ILEGALIDADE. PATOLOGIA INCLUÍDA NA COBERTURA DO CONTRATO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE ENTABULADO ENTRE AS PARTES. IMPOSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO AO TIPO DE TRATAMENTO. CUSTEIO INTEGRAL LIMITADO AO NÚMERO DE CONSULTAS/SESSÕES ANUAIS PREVISTAS NO ROL DE PROCEDIMENTOS E EVENTOS EM SAÚDE DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE (ANS). CONSULTAS/SESSÕES EXCEDENTES. REGIME DE COPARTICIPAÇÃO. RECURSO ADESIVO, AVIADO PELA AUTORA. NEGATIVA DE COBERTURA. DANOS MORAIS NÃO COMPROVADOS. MEROS ABORRECIMENTOS. SENTENÇA REFORMADA.1. O colendo Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento na linha de que é abusiva a recusa da operadora do plano de saúde de custear e/ou fornecer procedimento experimental quando este é necessário ao tratamento de moléstia objeto de cobertura contratual.2. Em sendo incontroverso, nos autos, que o plano de saúde do qual a autora é beneficiária possui cobertura para a condição que a acomete (autismo), tem-se que a operadora do plano de saúde não poderia ter negado o fornecimento dos tratamentos médicos prescritos pelos médicos que a assistem, em especial aqueles objetos do recurso sub examine, isto é, terapia ocupacional, fonoaudiologia e psicologia.3. Se a patologia está incluída na cobertura do contrato de assistência à saúde, é vedado às operadoras de plano de saúde impor limitação ao tipo de tratamento, sob pena de se vulnerar o objetivo primordial desta modalidade negocial, que é a promoção da saúde do contratante. Precedentes do colendo Superior Tribunal de Justiça.4. Os tratamentos com profissionais de fonoaudiologia, terapia e psicologia são de cobertura obrigatória do plano de saúde, por força do artigo 21, inciso III, da Resolução Normativa nº 387/2015 da Agência Nacional de Saúde.5. O número de consultas/sessões anuais fixado pela Agência Nacional de Saúde (ANS), no Anexo II do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, deve ser considerado apenas como cobertura obrigatória mínima a ser custeada plenamente pela operadora de plano de saúde, de modo que as consultas/sessões que ultrapassarem as balizas ali fixadas hão de ser suportadas também pelo usuário, em regime de coparticipação, conforme a orientação do colendo Superior Tribunal de Justiça emanada por ocasião do julgamento do REsp nº 1.679.190/SP..9. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA. RECURSO ADESIVO CONHECIDO, MAS DESPROVIDO. (TJGO, Apelação (CPC) 5189005-78.2017.8.09.0051, Rel. Des (a). ELIZABETH MARIA DA SILVA, 4ª Câmara Cível, julgado em 20/07/2020, DJe de 20/07/2020)

[12] Lei n. 10.216/2001 - Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

[13] Comunicado ANS – 84/2020

Victória Fernandes Carneiro, Advogada, graduada pela Universidade Católica de Goiás, pós-graduanda em Direito Civil, Processual Civil e Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada à Saúde, atuante na área de Direito Civil com foco no Direito da Saúde e Consumidor.