A exclusão das garantias prestadas por terceiros nos processos de Recuperação Judicial
No hodierno cenário econômico do país, em decorrência da redução em investimentos na indústria e comércio, e arrefecimento na circulação interna de riquezas, muitas são as empresas que recorrem ao remédio legal do instituto da Recuperação Judicial (Lei nº 11.101/2005), como subterfúgio à permanência no mercado, ambicionando evitar a bancarrota. Como consequência, deferido o processamento da Recuperação Judicial, via de regra, todos créditos existentes à data do pedido se sujeitam ao feito recuperatório.
Desta forma, desde a vigência da Lei em 2005, muitas foram as discussões jurídicas que abrolharam acerca da sujeição, ou não, de créditos e suas garantias ao procedimento recuperacional. Como resultado, cada vez mais os contratos e acordos comerciais foram se amoldando, perscrutando novas modalidades mais seguras e eficazes a evitar sua sujeição ao feito recuperatório, sucessivamente as modalidades de garantias ofertadas à preservação do crédito também.
Isto posto, o foco do presente artigo será perquirimos a respeito de uma temática bastante em voga, qual seja, a possibilidade de supressão ou substituição das garantias reais, fidejussórias ou cambiais, através da votação do Plano de Recuperação Judicial (PRJ), com cláusulas expressas neste sentido, durante a Assembleia Geral de Credores (AGC), e, principalmente, se a aprovação pela maioria, condicionaria a aceitação tácita pelos que se abstiveram de votar ou votaram de forma contrária.
Neste sentido, a princípio, após reiteradas discussões alusivas à possibilidade do prosseguimento de ações de cobrança ou execuções ajuizadas em face de devedores solidários ou coobrigados em geral, o Superior Tribunal de Justiça afetou o julgamento do tema à Egrégia Segunda Seção, nos termos do art. 543-C do CPC, do Recurso Especial Representativo de Controvérsia - nº 1.333.349/SP, exarando a seguinte tese quanto a essa problemática:
“A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005”.
(Grifo proposital)
Dessarte, após a aprovação do Plano de Recuperação Judicial, firmou-se sólido entendimento de que a novação prevista na Lei Especial nº 11.101/2005, difere daquela disciplinada pelo Código Civil, não alcançando as garantias prestadas por terceiros. Assim, sobreleva o entendimento de que a novação não interfere no direito dos coobrigados, fiadores, obrigados de regresso e avalistas, preservando-se, por conseguinte, as garantias reais ou fidejussórias.
Com efeito, se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (art. 364 do Código Civil), a novação decorrente do plano de recuperação traz, como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (art. 59, caput, da Lei n. 11.101/2005), as quais só serão suprimidas ou substituídas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia, por ocasião da alienação do bem gravado (art. 50, § 1º) [1].
Ademais, com relação aos devedores solidários ou coobrigados, a Lei expressamente prevê a preservação de suas obrigações caso seja deferida a recuperação judicial do devedor principal – artigo 49, §1º da Lei 11.101/2005.
O §1º do artigo 49 disciplina que: “§1º - Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, não se estendendo, por conseguinte a novação aos coobrigados”, imprimindo efetividade à letra da Lei, após vários julgados neste sentido, o STJ pacificou entendimento com a inscrição da Súmula nº 581 - "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória”.
Nesta mesma linha, imperioso se faz destacar a intenção normativa do Legislador em preservar as garantias e direito de terceiros, conforme previsão expressa em seus artigos 49, §1º; 50, §1º; 56, §3º; e 59 da Lei nº 11.101/2005, os quais vedam expressamente a supressão ou substituição de qualquer garantia real ou fidejussória dos credores da devedora (salvo, por óbvio, quando houver consentimento expresso por parte do credor titular da garantia).
Depreende-se do exposto acima, que o Tribunal da Cidadania através de julgados, súmula e recurso repetitivo de controvérsia, sedimentou entendimento intrincado e extremamente relevante, concernente aos direitos e privilégios expressamente previstos em Lei dos credores das empresas em Recuperação Judicial, decorrente de anos de tratativas a respeito da matéria em todo território nacional, os quais refletem apropriadamente a mens legis.
Por outro lado, há quem defenda que, à luz do disposto no artigo 49, §2º da Lei nº 11.101/2005, com base no princípio majoritário e no par conditio creditorum, seria possível a liberação de tais garantias pelo plano de recuperação judicial, desde que aprovado pela maioria dos credores da empresa em recuperação judicial, em sede de assembleia geral de credores.
“§ 2º As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial”.
Nesta senda, o polêmico julgado do STJ nº 1.700.487/MT traz como alicerce à controversa extensão da novação aos coobrigados, atingindo credores que não votaram favoravelmente à aprovação do plano de recuperação judicial, a relativização da norma; a soberania da AGC; nova interpretação conferida ao artigo 49, §2º; e uma possível inviabilidade à consecução do Plano de Recuperação Judicial.
Isto posto, temos que a discussão advém de saber se é possível ao devedor sobrepujar determinação legal a partir da inclusão de cláusula no plano de recuperação judicial que estenda a novação aos coobrigados, fiadores, obrigados de regresso e avalistas, ao fundamento de impulsionar o soerguimento da empresa.
De tal modo, no julgamento do REsp nº 1.700.487/MT asseverou-se que tanto a fiança, como o aval e o direito de regresso, por se tratarem de direitos disponíveis, são passíveis de transação entre as partes, portanto, comparecendo o credor à Assembleia Geral de Credores e votando favoravelmente ao PRJ, estaria anuindo à clausula extensiva da novação aos coobrigados, renunciando à garantia estipulada em seu favor.
Nessa linha, vale ressaltar que o disposto no artigo 49, §2º, - utilizado como espeque a conferir liberação das garantias de terceiro quando aprovado o PRJ -, refere-se às obrigações anteriores a recuperação judicial, ou seja, a obrigação principal, que observará as condições originalmente contratadas ou definidas em lei (§1º), inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial (§2º).
Vale destacar, ainda, que o parágrafo 2º do artigo 49, versa quanto a possibilidade de aplicação de deságios, prazos e encargos ao valor originalmente contratado, posto que o §1º do mesmo artigo delineia a obrigatoriedade em ser conservado o direito dos credores do devedor em recuperação judicial contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. Assim, o plano pode estabelecer prazos estendidos de pagamento, parcelamento dos créditos e deságios, por exemplo, mas não leva a entender pela supressão de garantias sem autorização do titular.
Neste sentido, trecho do voto vencido, quando do julgamento do REsp nº 1.700.487/MT, proferido pelo Ministro Relator Ricardo Villa Bôas Cueva:
“A conclusão que melhor equaciona o binômio "preservação da empresa viável x preservação das garantias" é a de que a cláusula que estende a novação aos coobrigados seria apenas legítima e oponível aos credores que aprovarem o plano de recuperação sem nenhuma ressalva, não sendo eficaz, portanto, no tocante aos credores que não se fizeram presentes quando da assembleia geral de credores, abstiveram-se de votar ou se posicionaram contra tal disposição”.
Em contrapartida, o voto vencedor proferido pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, interpreta de modo diverso o disposto no art. 49, §2º. Ressalta a soberania da AGC, a qual, naquele caso, aprovou, sem qualquer ressalva, a supressão das garantias reais e fidejussórias, e que por isto, o voto favorável deveria se estender aos demais credores da mesma classe, sob pena de manifesta contrariedade à deliberação majoritária, eis que entende que compreensão diversa inviabilizaria a consecução do PRJ, indo de encontro aos propósitos do instituto da Recuperação Judicial.
Frente ao exposto, denota-se que a discussão diz respeito, de um lado, à interpretação dos artigos 49, §1º, 50, §1º, 56, §3º, e 59 da Lei nº 11.101/2005, que vedam expressamente a supressão ou substituição de qualquer garantia real ou fidejussória dos credores da recuperanda (salvo quando houver consentimento expresso por parte do credor titular da garantia). Por outro lado, há quem defenda que, à luz do disposto no artigo 49, §2º, da Lei nº 11.101/2005, seria possível a liberação de tais garantias pelo plano de recuperação judicial, desde que aprovado pela maioria dos credores da empresa em sede de assembleia geral de credores.
Com efeito, superando-se o dualismo de interesses entre credores e devedora, temos que, de fato, o desígnio maior de um processo de recuperação judicial é a continuidade da atividade econômica, da geração de empregos e da preservação da função social da empresa viável.
Contudo, a proteção a esses bens maiores não pode ser imposta a qualquer custo, suprimindo garantias de credores que lhes foram asseguradas por terceiros que não estão em recuperação judicial e que muitas vezes são pessoas físicas, conforme muito bem salientou o Ministro Ricardo Villa Bôas Cueva em seu ponderado voto vencido nesse caso (REsp nº 1.700.487/MT), discorrendo que a ampla supressão dessas garantias “não favorece a recuperação, não tem nada a ver com o princípio da preservação da empresa e serve apenas à proteção do sócio”.
Derradeiramente, valoroso ressaltar a mens legis do Legislador ao formular a Lei 11.101/2005, preservando-a no projeto de Lei nº 10.220/2018, que prevê uma modificação substancial da norma, mas que reitera, por absoluto, a imperiosidade em se garantir a preservação da atividade econômica de empresas viáveis e saudáveis, bem como do interesse e direitos de toda coletividade de credores.
Nesse sentido, o artigo 49 permanece com substanciais alterações, mas que claramente se observa o reforço de proteção às garantias prestadas, conforme consta no novel § 12º, in verbis:
“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial os créditos cuja contrapartida tenha ocorrido até a data do pedido de recuperação e as obrigações existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, mesmo ilíquidos.
§ 12. O pedido de recuperação judicial não afeta as garantias prestadas no âmbito de operações compromissadas ou com derivativos”.
Seguindo a mesma linha aqui delineada, o artigo 50 também preserva seus termos originais, rememorando o disposto no §1º e adicionando o §3º, condicionando a supressão/substituição da garantia, mediante aprovação expressa do credor titular desta.
“Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:
§ 1º Na alienação de bem objeto de direito real de garantia ou alienação fiduciária, a supressão da garantia ou a sua substituição somente será admitida por meio da aprovação expressa do credor titular da garantia.
§ 3º A supressão de garantia acessória ou decorrente de penhora por crédito não sujeito à recuperação judicial gozará da mesma proteção prevista no § 1º”
O artigo 59 [2], por sua vez, reitera que o PRJ aprovado implica a novação dos créditos anteriores ao pedido, obrigando o devedor e os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, incluídas aquelas consideradas acessórias.
Conclui-se, portanto, que a preservação da empresa, princípio norteador da Lei 11.101/2005 e do PL nº 10.552/2002, não pode ser confundido com a preservação, a qualquer custo, do patrimônio do empresário ou da empresa ineficiente.
Por fim, em vista do cenário político e econômico vivenciado, mister se faz primar pela segurança jurídica dos atos praticados e aplicação apropriada e fiel da norma legal, a fim de fomentar a atividade empresarial e o crescimento econômico profícuo do país, e não ao revés, devendo o STJ zelar pela uniformização da interpretação conferida à Lei Federal em todo te
[1] Preceito extraído do voto do Relator Min. Luís Felipe Salomão - REsp nº 1333349 / SP (2012/0142268-4).
[2] Art. 59. O plano de recuperação judicial implica a novação dos créditos anteriores ao pedido e obriga o devedor e os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, incluídas aquelas consideradas acessórias, observado o disposto no § 1º do art. 50.
Escrito por:
Ana Lívia Carvalho Silva: Advogada pela PUC-GO. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Pós-Graduanda em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Integrante da Comissão de Direito Empresarial (OAB/GO). Membro do núcleo de Direito Empresarial, Falimentar e Recuperacional (NEmp) do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).
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