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O pagamento indevido e o enriquecimento ilícito à luz do Código Civil Brasileiro

Letícia Marina da S. Moura
19/07/2019
Do ponto de vista jurídico, a proibição do enriquecimento sem causa garante a equidade nas relações sociais. Por esse motivo, entende-se que, uma vez identificado tais pressupostos delimitados no art. 884 do Código Civil, nasce uma obrigação de restituir

Apesar de o Código Civil de 2002 disciplinar primeiramente acerca do pagamento indevido, nos termos do art. 876, para só então caracterizar o enriquecimento sem causa, com arrimo no art. 884 do mesmo Diploma Civil, a doutrina contemporânea depreende que este é um gênero que engloba dentre muitos fatos jurídicos, o pagamento indevido.

Dessa forma, com o fito de conferir maior didática ao presente estudo, passamos a compreender o conceito jurídico de enriquecimento sem causa para só então aprofundar na espécie de pagamento indevido. O Código Civil dedica uma parte de seu texto a fim de conceituar o fenômeno, in verbis:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido”.

À vista disso, depreende-se que o enriquecimento sem causa é uma forma de progresso financeiro ilícito, visto que uma das partes enriquece, sem causa jurídica para tal, às custas do empobrecimento da outra parte. Gagliano (2018) clarifica ao contextualizar o ato ao pagamento por engano de uma dívida ou a construção em um terreno alheio, em que, nas duas situações, uma pessoa é beneficiada pelo erro da outra parte, nascendo, assim, em algumas hipóteses previstas em lei, a necessidade de restituir o credor.

Nesse diapasão, apesar do conceito principal colocar como um dos requisitos para a caracterização do enriquecimento a ausência de uma causa jurídica ao pagamento, destaca-se a existência da possibilidade de criação da obrigação de restituir quando a causa que justifica o engrandecimento econômico deixa de existir no decorrer do contrato. Aplicando o conceito a uma situação do cotidiano, é o que ocorre quando um beneficiário de um direito real que aufere renda a partir de usufruto, reconhecidamente temporário, e, com o tempo, têm o seu direito ao recebimento do benefício em seu favor findado.

Portanto, do ponto de vista jurídico, a proibição do enriquecimento sem causa garante a equidade nas relações sociais. Por esse motivo, entende-se que, uma vez identificado tais pressupostos delimitados no art. 884 do Código Civil, nasce uma obrigação de restituir o indevidamente auferido, com a atualização dos valores monetários.

1. Pagamento Indevido

Uma vez conceituado o que é enriquecimento sem causa, é possível do pagamento indevido, uma de suas espécies. Dessa forma, compreende-se que o pagamento indevido pode ser uma das causas geradoras de um enriquecimento sem causa, vez que, por erro objetivo ou subjetivo, alguém paga em favor de outrem, algo que não deveria pagar.

O Diploma Civil, em seu art. 876, dispõe que “todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir, surgindo a obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição”. Dessa forma, nas palavras de Gonçalves (2013), ao passo que a quitação de um débito devido extingue uma obrigação, o pagamento indevido cria uma obrigação de restituir.

A doutrina moderna admite duas subespécies de pagamento indevido: objetivo e subjetivo. A divisão concentra-se no fato gerador do erro, ou seja, no primeiro caso, têm-se o equívoco em relação a existência ou extensão da obrigação, enquanto, o segundo apresenta erro pertinente a quem paga ou a quem recebe. Analisando a questão sob o prisma objetivo, destaca-se o pagamento de uma dívida inexistente, ou, em alguns casos, o devedor tem uma dívida, entretanto, paga mais do que deveria pagar por erro. Já sob o viés subjetivo, têm-se o pagador que paga uma dívida que não é sua, ou, por desconhecimento, paga a dívida a um terceiro na relação contratual.

Dessa forma, ressalta-se, nos dois casos, o pagamento voluntário e o erro do devedor, que encontra apoio no art. 877, do Código Civil Brasileiro, que àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro, a partir disso, é possível a adoção de medidas a fim de restituição da quantia paga indevidamente. Entretanto, o legislador também previu a possibilidade do solvens ser restituído afastando a prova do erro e a voluntariedade de pagamento, quando por cautela ou coação, este efetua o pagamento.

1.1. Dos efeitos jurídicos aos accipiens e terceiros na relação contratual

Além da obrigação de restituir, o pagamento também traz efeitos jurídicos diversos ao accipiens de boa-fé e má-fé, especialmente no que dispõe acerca dos contratos referentes à bens móveis. Dessa forma, consoante o art. 878, do Código Civil, tem-se que:

Art. 878: Aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa dada em pagamento indevido, aplica-se o disposto neste Código sobre o possuidor de boa-fé ou de má-fé, conforme o caso”.

Em relação aos credores de boa-fé, quando receberem um pagamento indevido, podem ser equiparados ao possuidor de boa-fé, aplicando ao disposto nos arts. 1.214, 1.217 e 1.219 do Diploma Civil[1], podendo receber pelos frutos que obteve da coisa recebida, indenização por benfeitorias úteis e necessárias e a possibilidade de reter a quantia paga por benfeitorias voluptuárias, e, ainda não responde por perdas ou deterioração da coisa.

Contudo, àqueles que demonstrem a má-fé na relação contratual, consoante elucidado por Gonçalves (2013) não terão direito aos frutos e responderão, desde o recebimento da coisa, por juros e deteriorações, fazendo jus apenas à indenização por benfeitorias necessárias.

O pagamento indevido também apresenta particularidades no que concerne o recebimento indevido de imóveis. Nesse caso, conforme doutrina majoritária, aquele que receber imóvel em pagamento de obrigação de dar coisa certa ou dação em pagamento, e, seguidamente, realizou a alienação, a título oneroso ou gratuito, a terceiro de boa-fé ou má-fé, veja-se:

Art. 879: Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.

Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação".

Dessa forma, responderá na proporção de sua intenção, sendo que, em caso de boa-fé, responderá este pela quantia recebida. Entretanto, constatando-se a má-fé, soma-se o valor do imóvel à perdas e danos. Ressalta-se, ainda, que a relação não abrangerá o terceiro de boa-fé, e, o proprietário só recuperará o imóvel caso demonstre a má-fé deste.

2. Direito à repetição

Ao contrário do que se pensa intuitivamente, o direito à repetição é a perda da possibilidade de exigir o pagamento indevido. Por tratar-se de uma exceção à regra, o Código Civil prevê taxativamente as hipóteses em que poderá ocorrer, nos termos do artigo 880[2], 882[3] e 883[4].

A primeira exceção destaca-se o pagamento a dívida verdadeira, paga por quem descobre, posteriormente, não ser o devedor. O dispositivo prevê conjuntamente a inutilização do título, vez que o credor, de boa-fé não está obrigado a restituir. Da mesma forma, não será obrigado aquele que voluntariamente realizar o pagamento de dívida que não poderá ser exigida juridicamente, apenas por dever moral.

Portanto, conclui-se que não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito ou proibido por lei. A doutrina cita o caso em que um agente contrate terceiro para realizar um crime, como, por exemplo, roubar uma peça que necessita para o seu carro e este embolsa o dinheiro e não realiza o pedido. Nesses casos, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

__________. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil: Diário Oficial da União, Brasil, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 16. mar. 2019.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. Manual de Direito Civil – Volume Único, 2ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Volume 3: contratos e atos unilaterais, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013.

Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil Brasileiro. Revista CEJ, v.08, n. 25, 2004. Disponível em: http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/616/796. Acesso em: 15 mar. 2019.

MALUF, C. A. D. Pagamento indevido e enriquecimento sem causa. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 93, p. 115-132, 1 jan. 1998. Disponível em: http://www.periodicos.usp.br/rfdusp/article/view/67402/70012. Acesso em: 16 mar. 2019.

Escrito por:

Letícia Marina da Silva Moura, graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás - Uni-Anhanguera. Membro da Liga Acadêmica de Ciências Jurídicas e Sociais (LACIJUS) e do núcleo de Direito Empresarial do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).

 


[1] Art. 1.214. O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos.

Parágrafo único. Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser restituídos, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio; devem ser também restituídos os frutos colhidos com antecipação.

Art. 1.217. O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa.

Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

[2] Art. 880. Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a pretensão ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas aquele que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador”.

[3] Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

[4] Art. 883. Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei.

Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz.

 

Letícia Marina da S. Moura (@le.moura7) é jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG), graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás - Uni-Goiás e especialização em curso em Direito Empresarial pela Faculdade Legale. Membro do núcleo de Direito Empresarial, Falimentar e Recuperacional (NEmp) do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).