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A polêmica batalha para impedir o sacrifício de um cavalo que ganhou habeas corpus  

05/08/2020 - 10:22

O cavalo Franco do Pec, da raça mangalarga, era considerado pelo seu dono como uma das apostas para futuras competições de equinos. No entanto, há três anos ele está recluso, corre o risco de ser sacrificado e não pode participar de disputas, após um exame apontar que ele tem uma doença grave. O diagnóstico, porém, é questionado pelo proprietário do animal.


Segundo o exame, feito em setembro de 2017, Franco tem mormo, uma zoonose contagiosa que pode infectar outros bichos e humanos. Não há vacina ou cura para a enfermidade. Comumente, animais diagnosticados com a doença são sacrificados para evitar a propagação da mazela, que é causada pela bactéria Burkholderia mallei e afeta, principalmente, o sistema respiratório.


A princípio, Franco seria sacrificado logo após o resultado do exame. No entanto, o proprietário do animal, o produtor rural Felipe Hamilton Loureiro, de 60 anos, recorreu à Justiça para impedir a morte do cavalo. Ele questionou o resultado do exame e disse que o equino não tem a doença, pois nunca havia apresentado sintomas e recebia assistência médica adequada para impedir que pudesse contrair uma mazela.


A Justiça suspendeu o sacrifício de Franco, mas determinou que o animal ficasse recluso em um centro de treinamentos até que houvesse uma decisão sobre o seu futuro.


Outros exames feitos no Brasil também atestaram que o animal tem mormo. No entanto, Loureiro pediu à Justiça que os materiais genéticos do cavalo fossem analisados em um laboratório da Alemanha, considerado por produtores de equinos como referência para tais exames.


A defesa do produtor rural relata que o sangue do cavalo foi colhido por um veterinário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e encaminhado para a Alemanha. O exame no laboratório do país europeu apontou que o animal não tem a doença. A Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo questionou o resultado.


Em 17 de junho, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) concedeu um inusitado habeas corpus — normalmente concedido a humanos — ao cavalo, para permitir que Franco deixe a reclusão em que vive há quase três anos. A decisão, porém, é provisória e o futuro de Franco permanece incerto.


A HISTÓRIA DE FRANCO


Dono de diversos cavalos, Loureiro conta que percebeu que Franco poderia ter destaque após o animal ganhar cerca de 20 competições entre equinos nos três primeiros anos de vida. "Ele venceu até competição nacional entre potros", diz o produtor rural.


Classificado pelo dono como um "reprodutor de alto valor genético" em razão de sua raça e de seu alto desempenho físico, Franco participava de diversas exposições agropecuárias. Em setembro de 2017, enquanto se preparava para um dos eventos nacionais mais importantes do ano, o animal passou por exames de rotina em um centro de treinamentos em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Os resultados dos exames impediram Franco de participar de qualquer outra atividade, em razão do diagnóstico de mormo.


"Não acreditei nesse exame. Um dos motivos que pode justificar esse falso positivo é que ele tinha tomado uma série de vacinas dias antes. O Franco não tem mormo. Ele sempre recebeu cuidados intensos, tinha feito exames meses antes que não apontaram nada e não tinha nenhum sintoma", diz Loureiro.


A Defesa Agropecuária de São Paulo determina o imediato sacrifício de animais com mormo, para evitar a propagação da doença entre outros bichos. No entanto, Loureiro logo recorreu à Justiça.

Ao determinar o isolamento de Franco no centro de treinamentos, o juiz de São João da Boa Vista, Heitor Siqueira Pinheiro, pediu novos exames. Todos os testes feitos no Brasil reafirmaram o diagnóstico da doença.


A defesa de Loureiro argumentou que os diagnósticos no Brasil possuem métodos semelhantes para analisar os materiais genéticos e, por isso, os resultados sempre serão semelhantes. Desta forma, o advogado pediu que os materiais do cavalo fossem colhidos e encaminhados para um laboratório da Alemanha. "É um país considerado referência para teste de mormo, porque tem uma técnica apurada", diz o advogado Fernando Tardioli, responsável pela defesa do produtor rural.


Em primeira instância, a defesa não conseguiu autorização para o teste fora do país. Então, protocolou pedido no Tribunal de Justiça de São Paulo. No início de 2020, o produtor rural conseguiu permissão para fazer o exame do cavalo na Alemanha.


"O sangue do Franco foi recolhido, sob a supervisão de um fiscal do Ministério da Agricultura, e levado para a Alemanha. Tudo isso foi custeado pelo dono do animal e seguindo o protocolo apontado pela Justiça", afirma Tardioli.


O resultado do exame na Alemanha deu negativo. "Já era esperado. O Franco não tem absolutamente nada, sempre esteve bem e vendendo saúde", afirma Loureiro. O produtor rural argumenta que manteve proximidade com o equino desde que ele foi isolado, mas nunca pegou qualquer doença do animal. "Nenhum animal que convivia com ele antes do isolamento pegou a doença. Não há nada que possa indicar que ele tem mormo", diz Loureiro.


HABEAS CORPUS AO CAVALO


O resultado do exame da Alemanha foi questionado pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo. A pasta disse à Justiça que devem prevalecer os resultados nacionais. A secretaria afirmou que Franco ficou sob cuidado de Loureiro desde que foi diagnosticado com a doença e disse que o produtor rural pode ter administrado "medicamentos que interferiram na resposta imunológica" do animal, que podem ter favorecido um resultado negativo.


A defesa de Loureiro, porém, argumentou que fez todos os procedimentos indicados pela Justiça para que o exame no exterior fosse feito adequadamente e negou qualquer interferência no resultado.


No Tribunal de Justiça de São Paulo, o relator do caso, desembargador Souza Meirelles, da 12ª Câmara de Direito Público, citou que a doença de mormo tem um "potencial realmente devastador" e disse que o quadro de Franco não evoluiu para a morte ao longo de quase três anos. O magistrado frisou ainda que não há relatos de animais ou até humanos, como o tratador do animal, que tenham sido infectados pela doença, que poderia ter sido transmitida pelo equino.


O desembargador citou que "o sacrifício de animais representa um ciclo já ultrapassado no contexto do atual estágio moral e espiritual da civilização", por isso destacou que é fundamental haver rígido controle do judiciário sobre o sacrifício, que, segundo ele, deve ocorrer somente em casos "excepcionalíssimos", quando não houver alternativas terapêuticas.


"A moderna formulação dogmática dos Direitos dos Animais (...), já consagra entrementes alguns direitos fundamentais igualmente intocáveis, como o direito à vida, à liberdade monitorada, conferindo-lhes tal dignidade existencial dentro da escala biológica que impede que figurem como receptáculos de atos de crueldade, ainda que para fins científicos ou sanitários", assinalou o desembargador.


Por considerar que não há comprovações seguras de que o animal possui a doença, o relator se baseou no exame feito na Alemanha e votou pela concessão de habeas corpus a Franco, para impedir que o animal seja sacrificado e para que ele possa deixar o isolamento. O voto foi acompanhado pelos outros dois desembargadores da 12ª Câmara de Direito Público.




Fonte: Globo.com/Época