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O Cram Down na legislação brasileira de Recuperação Judicial

14/05/2019 - 09:47

Ao longo da história da
evolução comercial, a Recuperação Judicial sempre esteve fortemente atrelada ao
dinamismo do mercado e proteção das empresas e empregados. Desde a instituição
da concordata suspensiva, criada a partir da entrada em vigor do Código
Comercial de 1850 e suas posteriores modificações com o Decreto-Lei nº
7.661/1945, o objetivo central do legislador era minimizar os efeitos provocados
pela instabilidade econômica de uma atividade empresarial no mercado brasileiro.


A globalização das relações
socioeconômicas e a modernização das técnicas de mercado influenciaram a
elaboração de leis modernas, de modo que a legislação brasileira acerca do tema
restou inspirada e sofreu influxos da legislação norte-americana do Bankrupcy
Code. Segundo o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho, o modelo brasileiro tenta
criar as condições de uma “barganha estruturada” entre devedores e credores, a
fim de maximizar o valor da empresa pela adoção de novo gerenciamento, o qual
deve ser aprovado por maioria de cada uma das classes de credores.


Assim, ultrapassados 13 (treze)
anos desde a entrada em vigor da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que
regula, dentre outros institutos, a Recuperação Judicial no Brasil, é certo que
a política de preservação de empresa insculpida na legislação em destaque
conservou inúmeras atividades produtivas viáveis.


A Lei de Recuperação Judicial
e Falência (LRF) inaugurou o distinto sistema no âmbito jurídico pátrio que,
diferentemente do Decreto-Lei anterior, outorgou mais poderes aos credores para
decidir os rumos da empresa ou do empresário que atravessa por um momento de dificuldades
econômico-financeiras.


Outrossim, elenca a legislação
de regência uma série de poderes ao órgão deliberativo denominado Assembleia
Geral de Credores, dentre os quais se destaca a possibilidade de decidir acerca
da aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial
apresentado pelo devedor. Nesse sentido, Flávio Ulhoa Coelho, ao dissertar
sobre a Assembleia Geral de Credores leciona que:


"O ato do procedimento
judicial em que privilegiadamente se percebe o objetivo da ambientação
favorável ao acordo é sem dúvida, a assembleia dos credores. Por esta razão, a
deliberação assemblear não pode ser alterada ou questionada pelo Judiciário, a
não ser em casos excepcionais como a hipótese do art. 58, §1º, ou a
demonstração de abuso de direito de credor em condições formais de rejeitar,
sem fundamentos, o plano articulado pelo devedor."


Dessa forma, para que o plano
de recuperação judicial seja considerado aprovado em Assembleia Geral de
Credores, se faz necessário que todas as classes de credores previstas em Lei
aprovem a proposta.


Em síntese, referidas classes
são compostas pelos credores trabalhistas, credores detentores de garantia
real, credores quirografários e credores enquadrados como microempresa ou
empresa de pequeno porte. Por isso, uma vez que se
conclua que o Plano de Recuperação Judicial não foi aprovado em todas as
classes, consequentemente o resultado da Assembleia representa a rejeição da
proposta e, em regra, deveria haver a convolação da recuperação judicial em
falência.


No entanto, a própria LRF
mitigou, em parte, a aventada soberania da Assembleia Geral quando elencou
critérios para a realização do controle judicial de eventual rejeição do plano
de recuperação pelo órgão colegiado de credores. Para tanto, o art. 58, § 1º,
da Lei nº 11.101/2005 descreve o seguinte:


Art. 58. (omissis)

§ 1º O juiz poderá
conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na
forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembleia, tenha obtido, de
forma cumulativa:

I – o voto favorável de
credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes
à assembleia, independentemente de classes;

II – a aprovação de 2
(duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja
somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1
(uma) delas;

III – na classe que o
houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores,
computados na forma dos §§ 1o e 2o do art. 45 desta Lei.

§ 2o A recuperação
judicial somente poderá ser concedida com base no § 1o deste artigo se o plano
não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver
rejeitado.


Vislumbra-se da redação legal
a criação de hipótese excepcional no sentido da concessão da recuperação
judicial mesmo sem que se atinja a quantidade de votos necessária à aprovação
do Plano pela Assembleia. Embora seja legalmente reservada a casos singulares
que se enquadrem nos requisitos do art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005, esse
instrumento tem sido amplamente aplicado ao direito pátrio.


Com o fito de corroborar essas
informações, destacamos os seguintes julgados: (TJGO, Agravo de Instrumento (CPC)
5193440-20.2018.8.09.0000, Rel. JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA, 3ª Câmara Cível, julgado
em 11/04/2019, DJe  de 11/04/2019; TJSP;  Agravo de Instrumento
2024243-81.2017.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª
Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Birigui - 1ª Vara Cível; Data
do Julgamento: 04/04/2019; Data de Registro: 04/04/2019 e; TJSC, Agravo de
Instrumento n. 0150632-73.2015.8.24.0000, de Ipumirim, rel. Des. José Maurício
Lisboa, 1ª Câmara de Enfrentamento de Acervos, j. 27-02-2019).


Conforme demonstrado, em
diferentes Estados da Federação, o Poder Judiciário tem aplicado a norma
prevista no art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 com rigor e em obediência à
previsão legal, o que deve ser celebrado, visto que tem sido consagrado, em
diversos casos, a possibilidade de preservação de empresas viáveis e garantido
segurança jurídica ao ordenamento brasileiro.


Não se olvida o fato de que
julgamento exarado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça em que, ao ser
apreciado o Recurso Especial nº 1.337.989-SP (2011/0269578-5), com fundamento
de evitar abuso do direito de voto de determinado credor, preferiu-se à
imperatividade da Lei, um exame supostamente pautado pelo princípio da
preservação da empresa, optando pela flexibilização da legislação de regência,
a fim de preservar àquilo que parecia ser o interesse da comunhão de credores,
conforme constou no voto do eminente Ministro Relator do mencionado recurso.


Data máxima vênia, restou realizada interpretação no intuito de importar
hipótese vedada implicitamente pela Lei nº 11.101/2005. Além disso, resguardadas
as especificidades do caso concreto, não raro, decisões judiciais no sentido do
referido julgado, pautam-se em premissas subjetivas para inovar
no ordenamento jurídico e criar exceção à já excepcional hipótese do cram down.


O indesejado ativismo
judicial, ao não considerar todas as vertentes da ratio legislativa, olvida-se que as finalidades perseguidas pela Lei
brasileira não é apenas preservar a superação da situação de crise
econômico-financeira do devedor whatever
it takes
(com as decisões que forem necessárias), mas, também, deseja
preservar os direitos dos credores e estimular a atividade econômica.


Portanto, embora a edição da
Lei nº 11.10/2005 tenha se espelhado originalmente nas normas vigentes na
legislação norte-americana, uma vez concretizada a hipótese de não aprovação de planos de
recuperação judicial por todas as classes previstas em Lei em Assembleia, deve
o Poder Judiciário ficar adstrito às requisitos formais para eventual concessão
ou não da recuperação judicial, valendo-se, na hipótese positiva, do instituto
do cram down, sob pena de, não o
fazendo, restar eivado de nulidade o decisum
que extrapole os poderes conferidos ao intérprete da Lei, vez que a
discricionariedade do Juízo está expressamente delimitada pela legislação de
regência.


Literatura consultada:


BRASIL, Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de
1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del7661.htm>.
Acesso em: 09 mar. 2019.


Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de
2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. Brasília: Presidência da República, 2005.


FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação
de empresas. São Paulo: Atlas, 2005.

COELHO, Fábio Ulhoa. Código Comercial e
Legislação Complementar Anotados. 4ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2000.


COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de
Falências e de Recuperação de Empresas. 7ªed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 203.


Escrito por:


Letícia Marina da Silva Moura, graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO),
especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal
de Goiás (UFG) e graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás –
Uni-Anhanguera. Membro da Liga Acadêmica de Ciências Jurídicas e Sociais
(LACIJUS) e do núcleo de Direito Empresarial do Instituto de Estudos Avançados
em Direito (IEAD).


Paulo Henrique Faria, Advogado
na área de Recuperação Judicial, pós-graduando em Direito Público pela
Faculdade Juris e graduado em Direito pela Faculdade Objetivo. Membro do núcleo
de Direito Empresarial do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).


Fonte: http://www.institutoead.org/