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O abuso de confiança do empregado no crime de furto

11/02/2019 - 10:40

INTRODUÇÃO


Este
artigo visa expor o emprego equivocado da qualificadora
de abuso de confiança
no crime de furto quando fundamentado exclusivamente
sobre a relação de emprego entre a vítima e o acusado.


A
gradativa está prevista no artigo 155, §4º, inciso II, primeira figura, do
Código Penal e deve ser estudada de forma criteriosa. Vejamos:


Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem,
coisa alheia móvel:

[...]

§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos,
e multa, se o crime é cometido:

[...]

II - com abuso de confiança, ou
mediante fraude, escalada ou destreza;

  (grifo
nosso)


O
artigo se baseia no liame subjetivo da qualificadora e na necessidade de fundamentá-la
no caso concreto. Para tanto, trabalhamos sobre um recorte doutrinário e
jurisprudencial.


DEFINIÇÃO DE CONFIANÇA PARA DOUTRINA


Para
explicar o enquadramento da qualificadora no caso concreto a ampla doutrina
primeiramente se debruçou sobre o significado de confiança com o propósito de
delimitar o seu abuso para o Código Penal.


É
cediço que toda relação humana é precedida de algum grau de confiança, ainda
que mínimo. O que se espera de toda relação pessoal ou jurídica é um certo grau
de credibilidade e boa-fé, de forma que se fosse diferente, a relação não se
consolidaria.


Cleber
Masson (2013) define confiança como “sentimento de credibilidade ou de
segurança que uma pessoa deposita em outra” e, próximo à sua posição, Guilherme
de Sousa Nucci (2017) define confiança como sendo “um sentimento interior de
segurança em algo ou alguém”.


No
mesmo sentido Rogério Greco (2017) atribui à confiança pressupostos ou
características inerentes, citando a liberdade, a lealdade, a credibilidade e a
presunção de honestidade.


Para
não restar nenhuma dúvida sobre o caráter subjetivo da confiança Cezar Roberto
Bitencourt (2015) a define como “sentimento interior de credibilidade,
representando um vínculo subjetivo de respeito e consideração entre o agente e
a vítima, pressupondo especial relação pessoal entre ambos”.


Logo,
temos que as definições de confiança exigem do interprete/julgador um olhar
sobre o caráter subjetivo da relação, não podendo ser auferido de forma
genérica.


A
questão ganha ainda maior contorno nas relações jurídicas que não predispõem
necessariamente de um vínculo pessoal anterior, exemplo que se concretiza na
relação de emprego, como será trabalhado a seguir.


CRITÉRIOS
PARA A INCIDÊNCIA DA QUALIFICADORA SEGUNDO A DOUTRINA


Como
definir a qualificadora do abuso de confiança no vínculo entre o empregador e o
empregado? 


Como analisar essa relação no caso concreto?


Cleber
Masson (2013) define dois critérios e conclui:


(a)
a vítima tem que depositar, por qualquer motivo (amizade, parentesco, relações
profissionais etc.), uma especial confiança no agente; e (b) o agente deve se
aproveitar de alguma facilidade decorrente da confiança nele depositada para
cometer o crime. A mera relação
empregatícia, por si só, não é assaz para caracterizar o abuso de confiança
(o
destaque é nosso). A análise deve
ser feita no caso concreto, no sentido de restar provado que o empregador
dispensava menor vigilância sobre seus pertences, como consectário da confiança
depositada no empregado.


Rogério Greco (2017), por vez, expõe:


Dessa
forma, também para que se caracterize a qualificadora em questão será preciso
comprovar que, anteriormente à prática da subtração, havia, realmente, essa relação sincera de fidelidade, que trazia uma
sensação de segurança à vítima
(o destaque é nosso).


Guilherme de Sousa Nucci (2017) ainda enfatiza:


[…]
a empregada doméstica recém-contratada, sem gozar da confiança plena (o destaque é nosso) dos patrões, cometendo furto
incide na figura simples. Note-se que a simples relação de emprego entre
funcionário e empregador não faz nascer a confiança entre as partes, que é um
sentimento cultivado com o passar do tempo […]


Conforme
exposto, a maior parte da doutrina entende que o abuso de confiança enquanto qualificadora
do crime de furto exige como pressuposto uma relação especial de confiança, um
verdadeiro depósito de credibilidade, o que não pode ser confundido com
qualquer relação humana.


De
outra parte, também é necessário pontuar que a doutrina, seguindo os
precedentes do Superior Tribunal de Justiça, costuma advertir que a relação de
emprego pode, a depender da atividade e da disponibilidade do bem objeto do
furto, indicar fatores objetivos para o emprego da qualificadora, dispensando
neste caso o estudo minucioso da confiança.


Guilherme
de Souza Nucci reforça que, se por um lado, a relação de emprego por si só não
pressupõe confiança, por outro lado “afastar a qualificadora do abuso de
confiança unicamente porque o empregado é novel seria desconectar o Direito
Penal da realidade” (NUCCI, 2017).


Para
tanto cita precedentes do STJ sobre a perspectiva específica da empregada
doméstica, em que fatores de ordem objetiva determinam a incidência da
qualificadora. Configurariam exemplos objetivos de confiança depositada no
empregado: o ato de entregar cópia das chaves do imóvel ou deixar casa sobre sua
responsabilidade durante viagem dos proprietários, ou ainda a contratação que
se deu em razão das “boas referências”.


Nesse
sentido também pontua Rogério Greco: “a relação empregatícia pode ou não
permitir a aplicação da qualificadora relativa ao abuso de confiança” (GRECO,
2017).


Isto
posto, é possível concluir que a qualificadora de ordem subjetiva pressupõe a
necessidade de uma análise caso a caso e, concomitantemente, sem que haja
antinomia, a atividade empregada pelo acusado pode traduzir fatores objetivos na
análise desta qualificadora, desde que tais fatores estejam fundamentados no
liame subjetivo da confiança.


CRITÉRIOS
PARA INCIDÊNCIA DA QUALIFICADORA SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA


Nesse
sentido tem caminhado a jurisprudência, afastando a qualificadora quando
imposta de forma genérica pelo simples vínculo empregatício ou quando não verificado
no caso concreto a relação de lealdade ou fidelidade.


Nesse
sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás:


[...] Para a configuração da qualificadora do abuso de confiança não
basta a simples existência de vínculo empregatício entre acusado e vítima (seu
patrão), sendo necessária a constatação de um liame subjetivo preexistente
entre eles, isto é, que o agente inspire a credibilidade e segurança nele
depositadas pelo ofendido, de modo que não demonstrada essa especial relação
pessoal de respeito e consideração - vínculo de lealdade e fidelidade - a
circunstância qualificadora deve ser extirpada [...]
(Recorte retirado da ementa do
julgado: TJGO 309279-80.2014.8.09.0175
- APELACAO CRIMINAL, DES. CARMECY ROSA MARIA A. DE OLIVEIRA, 2A
CAMARA CRIMINAL, DJ 2615 de 25/10/2018, ACÓRDÃO: 09/10/2018.)


Também decidiu
o Tribunal de Justiça do Distrito Federal:


[...] A caracterização da qualificadora pelo abuso de confiança
exige a formação de vínculo subjetivo de credibilidade entre o autor e a
vítima, construído anteriormente ao delito e que a "res" furtada
esteja na esfera de disponibilidade do agente em virtude dessa confiança nele
depositada, o que não se verifica "in casu" [...] 

Recorte retirado da ementa do julgado: Acórdão n.814102, 20120310189477APR, Relator: SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, Revisor: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, 2ª TURMA CRIMINAL, Data de Julgamento: 21/08/2014, Publicado no DJE: 27/08/2014. Pág. 219.





CONCLUSÃO


Não é incomum ver a qualificadora de abuso de confiança sendo
empregada de forma equivocada por consequência única do vínculo empregatício.
Toda relação de emprego pressupõe confiança, mas nem toda confiança pressupõe
lealdade e fidelidade por parte do empregador.


É imprescindível que se entenda a relação de emprego para que não
se confunda confiança substanciada na lealdade e na fidelidade com
pré-requisito de admissibilidade do empregador na relação trabalhista.


Enquanto uma diz respeito a uma relação forte construída e
alimentada com o decurso do tempo, a outra é um pressuposto mínimo de
convivência e relação pessoal/jurídica.


Também não esqueçamos que para o emprego da qualificadora a
subtração do bem no crime de furto tem que ser alcançada em razão da confiança
creditada pela vítima ao acusado. E, em consonância a este entendimento, as
atribuições desenvolvidas pelo acusado no trabalho podem atrair a
qualificadora, desde que fundamentadas na relação de confiança.


Isto posto, o emprego da qualificadora deve obedecer a situação
fática do caso concreto. Há, portanto, que se fundamentar os critérios da
qualificadora sob as provas do processo, ou, de outra maneira, deve ser
afastada.


BIBLIOGRAFIA


BITENCOURT, Cezar
Roberto. Código penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 711/712.

GRECO,
Rogério. Código Penal Comentado, 11ª ed., rev., ampl. e atual., Niterói, RJ:
Editora Impetus, 2017, p. 777.


MASSON,
Cleber. Direito Penal, Volume 2, Parte Especial. 5ª ed. rev., atual e ampl.,
Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 365.


NUCCI,
Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17ª ed. rev., atual e ampl., Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 550.



Jean Carlos Batista Moura é graduado em Direito
pela UFG. Professor na Escola Superior de Advocacia (ESA/GO). Advogado associado
ao escritório Elias Menta Advocacia. Associado ao Instituto de Estudos
Avançados em Direito e membro do Núcleo de Direito Penal. 


E-mail para
contato é: jean@menta.adv.br 


Fonte: http://www.institutoead.org/