As implicações jurídicas dos contratos de jogo e aposta
Quem nunca sonhou o que
faria se ganhasse aquele prêmio acumulado da Mega Sena? Embora apostas e jogos
lícitos façam parte da rotina em nossa sociedade, não é usual pensar nas
implicações jurídicas trazidas por estes. Contudo, o Código Civil Brasileiro
dispõe em seus artigos 814 a 817 sobre o conceito e proteções que os apostadores/jogadores
possuem ao assumirem esta forma de contrato.
Assemelhando-se ao
direito romano, a legislação brasileira proíbe grande parte dos jogos de azar,
como os praticados em cassinos, sendo que as apostas legalizadas atualmente
restringem à Loteria da Caixa Federal, sob administração da União.
Os jogos tradicionalmente
são associados às condutas socialmente indesejáveis e com grande possibilidade
de trazer prejuízos ao patrimônio financeiro dos envolvidos. Por isso, deste os
tempos antigos os jogos não constituem nenhuma obrigação jurídica, salvo se
tivessem como finalidade o exercício atlético e a ginástica. Entretanto, a
aposta já constava como geradora de obrigações e proteção legal.
1.
Contratos
de jogo e aposta
Muito embora o Código
Civil de 2002 apresente os contratos de jogo e aposta como o mesmo, é
necessário apontar algumas diferenças entre esses dois institutos. Os
magistrados Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2018) definem o contrato de aposta
como um “negócio jurídico em que duas ou mais pessoas, com opiniões diferentes
sobre certo acontecimento, prometem realizar determinada prestação àquela cuja
opinião deve prevalecer”. Já o contrato de jogo é o “negócio jurídico por meio
do qual duas ou mais pessoas prometem realizar determinada prestação a quem
conseguir um resultado favorável na prática de um ato em que todos participam”.
Acerca desse conceito
apresentado é fácil notar a diferença principal entre os dois instrumentos,
sendo que o último presume a participação ativa dos jogadores na situação
exposta, enquanto que o primeiro depende apenas da manifestação de vontade.
Os contratos de jogo e
aposta possuem natureza jurídica contratual, constituindo modalidades
contratuais bilaterais, com obrigações e direitos para todos os contratantes.
Da mesma forma, só se tornam relevantes ao Direito quando ocorrem de forma
onerosa, constituindo, assim, uma relação jurídica entre os participantes. E,
por fim, tendo em vista que a obrigação de uma das partes só pode ser
considerada devida em função de elementos futuros, é caracterizado como
aleatório.
1.2. Contratos de jogos
Os jogos podem ser
classificados entre ilícitos e lícitos, sendo que estes últimos se dividem em
tolerados e autorizados. Com efeito, os jogos ilícitos são aqueles proibidos
expressamente em nosso ordenamento, sendo que a Lei das Contravenções Penais
(Decreto-Lei nº 3.688/1941) estabelece em seu texto as principais condutas
ensejadoras de persecução criminal, tais como jogos de azar, loteria não
autorizada, jogo do bicho e outros.
Sobre os efeitos, Orlando
Gomes (2011) preceitua que o contrato de jogo proibido é nulo de pleno direito,
por ter causa ilícita. Nesses termos, o credor de dívida de jogo proibido não
tem o direito de reter o que recebeu. Destaca-se, a partir desse fragmento, que
a legislação trata apenas dos jogos e apostas lícitas, ou seja, que não são
tipificadas no Decreto-Lei retro mencionado.
Nesses termos, os
magistrados Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2018) explicam que toda modalidade
de jogo ou aposta que não esteja tipificada é considerada como lícita, tal como
aquela corrida apostada entre amigos para ver quem chega ao local de encontro
ou aquela rifa que você comprou de um estudante para ajudar na formatura.
Em relação aos jogos
lícitos, Carlos Roberto Gonçalves (2013) leciona que os jogos tolerados, embora
não ingressem no campo da ilicitude, não são bem vistos pela sociedade, em
razão disso, sofrem limitações impostas aos ilícitos. Portanto, não cria a
obrigação de pagar a dívida resultante da perda e nem mesmo o direito de
exigi-la.
Noutro passo, os jogos
considerados legalmente permitidos ou autorizados, são aqueles “considerados
socialmente úteis”, seja pelo benefício que trazem àqueles que praticam ou pelo
proveito que deles aufere o Estado, como é o caso das Loterias.
2.
Implicações
jurídicas: obrigações naturais e civis
Após conceituar e
caracterizar os contratos de aposta e jogo, é importante fazer a distinção
entre as obrigações naturais e civis, um dos pontos mais debatidos dentro do
tema. A doutrina explica que a obrigação civil é aquela em que existe um
vínculo jurídico de prestação entre devedor e o credor, podendo este, em caso
de inadimplemento, o direito de intervir judicialmente para garantir o
cumprimento por parte do devedor.
Contudo, nas obrigações
naturais, embora existam as figuras do devedor e credor, não há a garantia
jurídica, por isso, em regra geral, não há como exigir o pagamento ou devolução
por arrependimento.
Nos moldes da legislação
moderna, o célebre Carlos Roberto Gonçalves (2013) dispõe que a característica
marcante do jogo e da aposta reside no fato de constituírem uma obrigação
natural, inexigível por natureza. Ou seja, limita-se o direito de exigir de
volta o valor pago neste contrato. Em harmonia de ideias, Silvio Venosa (2006)
afirma que o jogo e a aposta são contratos aleatórios e a lei não lhes confere
exigibilidade em razão de serem, em princípio, condenáveis moralmente.
Contudo, a análise do
artigo 814 do Diploma Civil, especificamente o seu inciso 3º, abre a
possibilidade de a obrigação natural tornar-se civil quando há a regulação
estatal destes jogos e apostas, in verbis:
“Art.
814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode
recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo,
ou se o perdente é menor ou interdito.
§
1o Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento,
novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser
oposta ao terceiro de boa-fé.
§
2o O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo
não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.
§
3o Excetuam-se, igualmente, os prêmios
oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva,
intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições
legais e regulamentares”.
No mesmo sentido, os
principais julgados a respeito do tema informam a harmonia com as palavras
acima, veja-se:
“RECURSO
ESPECIAL. CIVIL. DÍVIDA DE JOGO. CASA DE BINGOS. FUNCIONAMENTO COM AMPARO EM
LIMINARES. PAGAMENTO MEDIANTE CHEQUE. DISTINÇÃO ENTRE JOGO PROIBIDO, LEGALMENTE
PERMITIDO E TOLERADO. EXIGIBILIDADE APENAS NO CASO DE JOGO LEGALMENTE
PERMITIDO, CONFORME PREVISTO NO ART. 815, § 2º DO CÓDIGO CIVIL.
1.
Controvérsia acerca da exigibilidade de vultosa dívida de jogo contraída em
Casa de Bingo mediante a emissão de cheques por pessoa diagnosticada com estado
patológico de jogadora compulsiva.
2.
Incidência do óbice da Súmula 284/STF no que tange à alegação de abstração da
causa do título de crédito, tendo em vista a ausência de indicação do
dispositivo de lei federal violado ou objeto de divergência jurisprudencial.
3.
"As dívidas de jogo ou de aposta
não obrigam a pagamento" (art. 814, caput), sendo que "o preceito
contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só
se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos." (art. 814, §
2º, do Código Civil).
4.
Distinção entre jogo proibido, tolerado
e legalmente permitido, somente sendo exigíveis as dívidas de jogo nessa última
hipótese.
Doutrina
sobre o tema.
5.
Caráter precário da liminar que autorizou o funcionamento da casa de bingos,
não se equiparando aos jogos legalmente autorizados.
6.
Inexigibilidade da obrigação, na
espécie, tratando-se de mera obrigação natural.
7.
RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (REsp 1406487/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO
SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/08/2015, DJe 13/08/2015)”
Dessa forma, segundo
entendimento dos magistrados baianos Stolze e Pamplona, denota-se uma obrigação
natural apenas quando os jogos são considerados tolerados, visto que a lei não
atribui qualquer sanção apenas para não fomentar a prática de ato que não tem
objetivo sério. Ainda em consonância com o disposto, tem-se uma obrigação civil
somente quando aquele jogo ou aposta tem regulamentação estatal, posto que é
juridicamente exigível, em todos os seus efeitos.
Portanto, nas palavras de
Carlos Roberto Gonçalves (2013), somente os jogos autorizados dão nascimento a
negócios jurídicos, cujos efeitos são legalmente previstos, e,
conseguintemente, quem ganha tem ação para receber o crédito.
3. Exceções apontadas pela legislação
Em contradição ao Código
de 1916, o Diploma Civilista vigente prevê expressamente que as bolsas de
valores não se assemelham aos jogos e aposta:
“Art.
816. As disposições dos arts. 814 e 815 não se aplicam aos contratos sobre
títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipulem a liquidação
exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles
tiverem no vencimento do ajuste”.
A doutrina majoritária
entende que, apesar dos negócios realizados em bolsa de valores serem
considerados de risco, o objetivo destas em nada se equipara aos jogos e
apostas, uma vez que pretende organizar um mercado livre e aberto para
negociação de produtos.
Da mesma forma, proclama
em seu artigo 817 a diferenciação do sorteio dos instrumentos ora analisados.
Gonçalves (2013) informa que o sorteio é utilizado exclusivamente para dirimir
questões ou dividir coisas comuns, não existindo, em nenhuma hipótese, perda ou
lucro para as partes envolvidas.
Portanto, depreende-se
que a lei é taxativa no enquadramento e geração das obrigações provenientes dos
jogos e apostas, oferecendo segurança jurídica às relações e proteção aos
agentes envolvidos em contratos lícitos e regulamentados.
Referências
bibliográficas
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de
outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm>.
_______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro
de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO,
Rodolfo. Manual de direito civil – 2º ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
GOMES, Orlando. Contratos, 24ª Ed., Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil
brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais, 10ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2013.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Dos
Contratos e Declarações Unilaterais de Vontade. 25º ed., V. 03, São Paulo:
Saraiva, 2000.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil:
teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, 6ª ed., São Paulo:
Atlas, 2006.
Escrito por:
Letícia Marina da Silva
Moura, graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e
Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e graduanda em Direito pelo
Centro Universitário de Goiás - Uni-Anhanguera. Membro da Liga Acadêmica de
Ciências Jurídicas e Sociais (LACIJUS) e do núcleo de Direito Empresarial do
Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).