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Questionamentos contra distanciamento social foram frequentes desde o início da pandemia

22/03/2021 - 08:00

As normas de distanciamento social adotadas pelos governos estaduais e municipais no combate à pandemia do novo coronavírus motivaram grande número de ações na Justiça, muitas delas invocando a garantia constitucional do direito de ir e vir ou questionando a competência das administrações locais para a instituição das medidas restritivas.


Esse foi um conflito dos mais presentes nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) relacionadas à Covid-19 durante o primeiro ano da crise sanitária, ao lado dos processos em que se discutia a possibilidade de flexibilização de prisões diante do risco de infecção nos estabelecimentos penais – tema da reportagem especial do último domingo (14).


Os questionamentos sobre o isolamento social e seus impactos na economia e nos dados epidemiológicos não são exclusivos do Brasil, constituindo pauta frequente no mundo todo, e não foram poucas as vezes em que coube ao Judiciário a última palavra sobre essa tensão entre direitos individuais e interesses coletivos.


Além desses casos, o STJ enfrentou, no ano da pandemia, controvérsias relacionadas a planos de saúde, preços de medicamentos, uso de recursos públicos e até prescrição de drogas sem comprovação científica para o tratamento da doença. 


No dia 13 de abril, o ministro Jorge Mussi indeferiu habeas corpus impetrado pelo deputado estadual Alexandre Teixeira de Freitas (Novo) em favor de todos os cidadãos que fossem flagrados transitando pelas vias públicas e praias do estado do Rio de Janeiro.


O parlamentar pretendia que os agentes públicos fossem impedidos de abordar, deter ou processar as pessoas encontradas circulando nesses espaços e que não estivessem contaminadas pelo novo coronavírus.


No habeas corpus, foi apontado como autoridade coatora o governador Wilson Witzel (atualmente afastado). O deputado alegou que Witzel não tinha poderes para suprimir coercitivamente o direito de ir e vir dos cidadãos fluminenses, e que o isolamento social de pessoas saudáveis deveria ser opcional. Ele sustentou a ilegalidade do Decreto Estadual 47.006/2020 , que suspendeu a execução de uma série de atividades no estado em razão da pandemia da Covid-19.


Ao indeferir o pedido, Jorge Mussi afirmou que, de acordo com a jurisprudência do STJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), não é cabível a impetração de habeas corpus contra ato normativo em tese – no caso, o Decreto 47.006/2020, questionado pelo deputado.


Ele afirmou também que o habeas corpus não pode ser analisado por ter sido formulado de maneira genérica, em favor de pessoas não identificadas.


Segundo Mussi, é indispensável, no habeas corpus, a identificação dos pacientes (pessoas cujo direito se pretende preservar), além da individualização do que seria o alegado constrangimento ilegal, justamente porque nesse tipo de processo não há produção de provas (HC 572.269).


Em 20 de maio, ao indeferir um habeas corpus preventivo impetrado contra o isolamento social em Pernambuco, o ministro Rogerio Schietti Cruz afirmou que, naquele momento, tirando o Brasil e os Estados Unidos, talvez em nenhum outro país "o líder nacional se coloque, ostensiva e irresponsavelmente, em linha de oposição às orientações científicas de seus próprios órgãos sanitários e da Organização Mundial de Saúde".


"Em nenhum país, pelo que se sabe, ministros responsáveis pela pasta da Saúde são demitidos por não se ajustarem à opinião pessoal do governante máximo da nação e por não aceitarem, portanto, ser dirigidos por crenças e palpites que confrontam o que a generalidade dos demais países vem fazendo na tentativa de conter o avanço dessa avassaladora pandemia", acrescentou Schietti.


No habeas corpus coletivo submetido ao STJ, a deputada estadual Clarissa Tércio (PSC) pretendia a concessão de salvo-conduto para que a população de Pernambuco pudesse circular livremente, a despeito do Decreto Estadual 49.017, de 11 de maio, que intensificou as medidas de restrição à movimentação de pessoas para combater a pandemia.


O ministro considerou que parlamentar estadual não tem legitimidade processual para representar os interesses coletivos dos supostos beneficiários do habeas corpus. Citando dados de infecção e mortes causadas pela doença, ele afirmou que, além de não ter viabilidade jurídica, o pedido da deputada "parece ignorar o que acontece, atualmente, em nosso país" (HC 580.653).


Em outro caso, a ministra Laurita Vaz indeferiu o pedido de um advogado para que fosse paralisado o Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi), utilizado pelo governo do estado de São Paulo para a observação do deslocamento de pessoas durante a pandemia, a partir da localização dos telefones celulares.


A ministra explicou que o habeas corpus não é instrumento de controle abstrato da validade das normas.


Atuando em causa própria, mas pretendendo também que o habeas corpus fosse concedido em favor de toda a população de São Paulo, o advogado alegou que o governador João Doria adotou medida "ilegal e ditatorial" ao implementar o sistema de monitoramento.


Ao lembrar que o habeas corpus está previsto na Constituição para preservar o direito de ir e vir, a relatora apontou que o advogado não esclareceu de que maneira o Simi poderia influenciar diretamente na liberdade de locomoção dos habitantes de São Paulo.


"Não foram apontados quaisquer atos objetivos que possam causar, direta ou indiretamente, perigo ou restrição à liberdade de locomoção no caso – o que inviabiliza, por si só, o manejo do remédio heroico", disse a ministra (HC 572.996).


No mês seguinte, Laurita Vaz indeferiu o pedido de outro advogado – desta vez do Ceará – que buscava salvo-conduto contra as medidas de isolamento social. Na opinião do impetrante do habeas corpus, o decreto estadual que adotou as medidas criou uma possibilidade de prisão por deslocamento fora das condições previstas – o que seria inconstitucional. Com o salvo-conduto, ele pretendia ter a segurança de circular livremente sem o risco de ser incomodado ou punido pelas autoridades.


Ao analisar o pleito, a ministra afirmou que, embora sejam relevantes as questões apontadas sobre o direito de locomoção, essa garantia não é absoluta, devendo ser ponderada diante de outros direitos, como à saúde e à vida.


De todo modo – prosseguiu a relatora –, o advogado não apresentou prova pré-constituída de concreta e injusta coação à sua liberdade de ir e vir (HC 579.472).


No dia 16 de abril, o ministro Ribeiro Dantas indeferiu um habeas corpus preventivo em que três advogados de São Paulo pediam salvo-conduto para não serem presos por desrespeitar o isolamento social, caso o governador João Doria cumprisse a ameaça de endurecer as regras de combate à pandemia.


Ribeiro Dantas citou jurisprudência do STJ no sentido de que não é cabível habeas corpus contra ato hipotético. Ele enfatizou que, de acordo com o trecho da entrevista destacado pelos próprios advogados na petição inicial, o governador de São Paulo apenas disse que, caso não fossem elevados os índices de isolamento, poderiam ser tomadas medidas mais duras. Por isso, segundo o ministro, o ato que configuraria o alegado constrangimento ilegal na visão dos advogados "sequer existe, sendo ele totalmente hipotético".


Nessa hipótese, destacou, não há flagrante ilegalidade que justifique a tramitação do habeas corpus no STJ (HC 572.879).


No mesmo mês, a ministra Assusete Magalhães extinguiu mandado de segurança no qual a família de um paciente internado no Rio de Janeiro, com quadro condizente com infecção pela Covid-19, buscava garantir tratamento imediato com o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina – medicamentos que não têm eficácia cientificamente comprovada contra a doença. O mandado de segurança foi impetrado contra o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.


A família juntou ao pedido opiniões de médicos a favor da administração dos remédios logo nos primeiros dias do quadro infeccioso. Segundo o mandado de segurança, a vida do paciente estaria sendo colocada em jogo por "mera burocracia, consubstanciada em protocolos de pesquisa".


Ao analisar o pedido, a ministra Assusete Magalhães afirmou que não foi indicado qual ato de efeitos concretos do ministro da Saúde teria violado direito líquido e certo do paciente.


"Ademais, no caso, sequer há laudo ou atestado médico recomendando o uso da medicação postulada ao impetrante", observou a ministra, acrescentando que também não consta dos autos comprovação de que a médica que o acompanha tenha deixado de usar os medicamentos por determinação direta do ministro da Saúde.


Dessa forma, por entender que o titular do Ministério da Saúde era parte ilegítima para compor o polo passivo do mandado de segurança, Assusete Magalhães julgou extinto o processo, sem resolução de mérito (MS 26.024).


Em 30 de março, o ministro Francisco Falcão determinou que os recursos obtidos em um acordo de colaboração premiada no âmbito da Operação Calvário, que investigou fraudes na gestão de hospitais públicos, fossem utilizados exclusivamente em ações contra a Covid-19.


Segundo a decisão, os recursos deveriam ser destinados ao Ministério da Saúde e utilizados para a aquisição de produtos médico-hospitalares de necessidade emergencial, prioritariamente aparelhos respiratórios e equipamentos correlatos, máscaras de proteção, escudos faciais e insumos para fabricação, em impressoras 3D, de materiais de manutenção e proteção dos profissionais de saúde.


Para Francisco Falcão, a destinação dos recursos provenientes da colaboração premiada para a saúde guarda estreita sintonia com o previsto na Resolução 313/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editada em razão da situação emergencial da pandemia.


"No presente caso, ainda mais pertinente se mostra a destinação dos recursos para emprego na área da saúde pública, tendo em vista que as investigações descortinaram desvios milionários e malversação de recursos públicos na seara da saúde, nos estados do Rio de Janeiro e da Paraíba", afirmou. Ele também apontou o contexto da crise sanitária, que se alastrava naquele momento inicial e já ameaçava congestionar os serviços médico-hospitalares (processo em segredo de Justiça).


Uma empresa de manutenção de elevadores teve acolhido pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho (hoje aposentado) seu pedido de tutela provisória para a liberação de cerca de R$ 80 mil que estavam bloqueados em uma execução fiscal.


No pedido de urgência, a empresa alegou que estava fechada em razão da pandemia e, em consequência, com dificuldade para arcar com a folha de pagamentos. Diante disso, o ministro determinou que os valores desbloqueados fossem utilizados exclusivamente na quitação de salários e encargos.


Segundo a empresa, embora os gastos com a folha de pagamentos girassem em torno de R$ 45 mil por mês, ela estava se esforçando para manter todos os empregos, mesmo na situação de calamidade vivida pelo país.


"Considerando a plausibilidade jurídica dos argumentos expendidos e o perigo de dano irreparável, sem prejuízo da reapreciação da matéria no julgamento do mérito, defere-se a tutela provisória liminar requerida para liberar o valor de R$ 80 mil, comprometendo-se a parte requerente a prestar contas do referido valor, que será utilizado para quitação de salários e encargos", concluiu o ministro ao deferir a tutela provisória (REsp 1.856.637).


Em julho do ano passado, o então presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, suspendeu uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) que obrigava a prefeitura de São Luís a repassar cerca de R$ 277 mil, diariamente, para as empresas de transporte público do município.


O repasse seria uma forma de compensar as empresas pelas medidas tomadas pela prefeitura para conter a pandemia do novo coronavírus, as quais reduziram drasticamente o movimento de passageiros.


Segundo o magistrado, a liminar do tribunal maranhense causou lesão à ordem pública, já que, de maneira geral e abstrata, estipulou a garantia de uma "ajuda emergencial" a ser paga pelo poder público às concessionárias do serviço de transporte público.


O presidente do STJ destacou que não cabe ao Judiciário assumir o papel de gestor nesse tipo de situação. "O Judiciário não pode converter-se em administrador positivo e determinar uma série de medidas, a exemplo das contempladas na decisão liminar do TJMA, especialmente nas circunstâncias atuais, sob pena de lesão à ordem público-administrativa", afirmou (SLS 2.747).


A Covid-19 foi o fundamento adotado pela ministra Isabel Gallotti para determinar que a Unimed de São José do Rio Preto (SP) mantivesse o plano de saúde de um casal de idosos até que a Quarta Turma julgasse recurso sobre a possibilidade de rescisão unilateral do contrato por parte da administradora.


Ao examinar o pedido de urgência, a ministra levou em consideração o argumento apresentado pelos agravantes de que o plano coletivo empresarial ao qual estavam vinculados tinha cobertura para apenas dois usuários. Nessa situação – destacou a relatora –, a Segunda Seção entende que não é possível, por parte das operadoras, a rescisão unilateral imotivada do contrato.


"Observo, de outra parte, que a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia de Covid-19, o que ensejou edição de decreto de calamidade pública no Brasil desde o dia 20 de março de 2020, circunstância que também desaconselha a suspensão do contrato de plano de saúde dos requerentes no presente momento, especialmente em razão de contarem eles com mais de 60 anos de idade e, portanto, estarem incluídos no grupo de risco", ponderou a relatora.


Isabel Gallotti ressaltou ainda que, como noticiado pela imprensa, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) havia recomendado às operadoras de planos de saúde que não suspendessem ou rescindissem os contratos de usuários inadimplentes.


"Dessa forma, com maior razão, deve ser mantido o contrato dos usuários que estão em dia com as mensalidades (hipótese dos autos)", concluiu a ministra. Ainda não houve o julgamento do mérito do recurso (REsp 1.840.428).


Em 22 de junho, o ministro Herman Benjamin indeferiu pedido de liminar do partido Rede Sustentabilidade para suspender os efeitos da Resolução 1/2020 da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que estabeleceu o reajuste anual máximo dos preços para 2020.


O ministro entendeu que, com a expiração do prazo de 60 dias de suspensão dos aumentos de preços estipulado pela Medida Provisória 933/2020, o CMED apenas cumpriu a determinação da Lei 10.742/2003 ao editar a nova tabela.


De acordo com o magistrado, caberia ao Poder Legislativo decidir sobre a suspensão dos reajustes, e até havia, em andamento no Senado e na Câmara, iniciativas para ampliar o prazo de suspensão, inclusive com proposições no âmbito da própria MP.


"Não vislumbro, no momento, os requisitos para a concessão da medida liminar, nada obstando que, no curso da presente ação, novos elementos levem à modificação do presente entendimento, notadamente pela grave crise sanitária e econômica por que o país passa", finalizou o ministro ao indeferir o pedido urgente no mandado de segurança – cujo mérito ainda não foi analisado (MS 26.278).


A série Bibliografias Selecionadas, produzida pela Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, lançou uma edição especialmente dedicada ao tema Covid-19.


A publicação reúne referências de livros, artigos de periódicos, legislação, notícias de portais especializados e outros textos, muitos deles na íntegra. Periodicamente, são lançadas novas edições sobre temas relevantes para o STJ e para a sociedade em geral.


HC 572269

HC 580653

HC 572996

HC 579472

HC 572879

MS 26024

REsp 1856637

SLS 2747

REsp 1840428

MS 26278




Fonte: STJ