Operação Lava-Jato: os reflexos do deslocamento da competência para a Justiça Eleitoral


Contexto histórico
Em meio a deflagração da 51ª fase da Operação Lava-Jato, o ilustre Ministro Marco Aurélio Mello, proferiu decisão em que declinou a competência do Supremo Tribunal Federal para a primeira instância da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em que o atual Deputado Federal Pedro Paulo Carvalho Teixeira estava sendo investigado pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, ocultação de bens ou valores provenientes de crime e evasão de divisas.
Segundo consta do voto do Ministro, os fatos sob investigação foram supostamente praticados durante o ano de 2010, período em que Pedro Paulo Carvalho ocupava o cargo de deputado estadual, bem como que os valores auferidos ilegalmente eram destinados à campanha da Prefeitura do Rio de Janeiro, razão pela qual a Suprema Corte não detinha competência para investigação e julgamento.
Inconformada, a Defesa do deputado agravou da decisão, buscando que a investigação fosse mantida no Supremo Tribunal Federal, pois os fatos não correspondiam à campanha para prefeitura do município do Rio de Janeiro, mas sim à reeleição de Pedro Paulo ao cargo de deputado federal. Alternativamente, afirmaram que os delitos possuíam conotação eleitoral, postulando a remessa do presente inquérito para a Justiça Eleitoral, detentora da competência especializada e crimes conexos.
E foi assim, nesse contexto jurídico-político, que o Supremo Tribunal Federal foi incitado a analisar se a Justiça Eleitoral seria a justiça competente para julgamento dos crimes comuns quando em conexão com delitos eleitorais.
Definindo a competência criminal
Na seara criminal, o Código de Processo Penal em seu art. 69 estipula quais serão os critérios para a fixação da competência, quais sejam: lugar da infração, domicílio ou residência do réu, natureza da infração, distribuição, conexão ou continência, prevenção e prerrogativa de função.
Doutrinariamente, de forma mais abstrata, a divisão é feita em competência ratione persona (quanto à pessoa), ratione materiae (quanto à matéria) e ratione loci (quanto ao local da infração).
AVENA (p. 621, 2017) esclarece que tais critérios são os principais, existindo ainda o alternativo ou facultativo (domicílio ou residência do réu), e também critérios secundários, quais sejam: prevenção, normas de organização judiciária, distribuição e conexão/continência.
Essa divisão transparece a ordem de observância dos critérios, isto é, apenas serão observados os critérios alternativo ou facultativo e os secundários quando os principais forem insuficientes para a determinação da competência (AVENA, p. 623, 2017).
Contudo, importante notar que os critérios de conexão e continência independem dessa análise, já que são elementos modificadores de uma competência anteriormente estabelecida. Nesse cenário é que se deu o conflito decidido pelo STF, análise quanto ao critério de conexão. Como já dito, a conexão modifica a competência anteriormente estipulada.
No entanto, a partir dessa conclusão, surge uma nova celeuma: Mas e quando os crimes conexos se diferem quanto à matéria?
Explica-se: os crimes eleitorais são julgados pela Justiça Eleitoral, os crimes militares, pela Justiça Militar, e os crimes comuns, pela Justiça Comum, obedecendo ao critério ratione materiae. Se o crime comum é conexo ao crime eleitoral, então qual justiça deverá atrair a competência de julgar ambos os crimes? O Código de Processo Penal, em seu art. 78, inciso IV, traz a resposta: no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.
Entre os pontos abordados pelo STF está a natureza dos crimes discutidos no caso em questão (se são ou não eleitorais e/ou conexos a este), e se deve haver cisão entre os processos, de forma que aqueles que não possuam natureza especializada, sejam julgados pela Justiça Comum Estadual ou Federal.
Segundo àqueles que eram a favor da cisão do julgamento, a competência da Justiça Comum era estabelecida no âmbito da Constituição Federal, enquanto que a da Justiça Eleitoral no Código Eleitoral - lei infraconstitucional. Logo, as disposições deste não poderiam modificar a Carta Magna.
Os que divergiram desta linha de pensamento, afirmaram que a ressalva à competência da Justiça Eleitoral é feita na própria Constituição, em seu artigo 109, inciso IV, que lastreia a competência da Justiça Federal nos seguintes termos:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[...]
IV os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; (grifamos)
Vale ainda lembrar que o art. 121, também da Constituição, estipula ser matéria de Lei Complementar a disposição da competência da Justiça Eleitoral. No julgamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal, foi lembrado que tal entendimento não é novo e acompanha a lógica constitucional desde 1934, razão pela qual cairia por terra o argumento de que lei infraconstitucional não poderia sobrepor à Constituição Federal.
Não se trata de sobreposição de leis, mas sim de previsão constitucional estabelecendo que a competência seria definida por lei complementar, ou seja, como o próprio nome já diz, uma lei que complementaria as disposições estabelecidas pela Constituição Federal.
A consolidação do entendimento
No STJ o debate foi acirrado e encerrou-se com 6 a 5 votos, firmando-se a tese de que os crimes comuns conexos aos eleitorais deveriam ser julgados pela Justiça Eleitoral. Tal entendimento, segundo os que aderiram à corrente prevalecente, não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro.
Foi trazido à baila que as Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1969 estipulavam ser da Justiça Eleitoral a competência para julgar os crimes comuns conexos aos eleitorais.
Tal tradição fora quebrada pela Constituição Federal de 1988 e ainda assim não deixou de ser observada, sendo colocada em pauta na legislação infraconstitucional. Também foi demonstrado que o entendimento do Supremo sempre caminhou neste sentido, sendo citados o conflito de competência 7.033, relatado pelo ministro Sydney Sanches, o conflito de jurisdição 6.070, cuja relatoria foi do ministro Moreira Alves, e também pelos recentes julgados proferidos pela 2ª Turma: embargos declaratórios no agravo regimental na petição 6.820, redator do acórdão ministro Ricardo Lewandowski e agravo regimental no agravo regimental na petição 6.694, redator do acórdão ministro Dias Toffoli.
O entendimento encontra suporte também na Doutrina, como leciona Aury Lopes Jr (p. 261, 2018):
[...] Sempre que tivermos um crime eleitoral conexo com um crime comum, previsto no Código Penal, a competência para julgamento de ambos (reunião por força da conexão) será da Justiça Eleitoral (art. 78, IV).
Vale também citar os ensinamentos de Noberto Avena (p. 638, 2017):
A Constituição Federal é vaga acerca da competência da Justiça Eleitoral, limitando-se, no seu art. 121, a dispor que lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais. Considerando essa disciplina e tendo em vista que ainda não foi editada a referida lei complementar, tem-se utilizado como balizador dessa competência o art. 35, II, do Código Eleitoral, quando estabelece que compete aos Juízes Eleitorais processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos. (grifos no original)
A tese prevalecente no julgamento do STF, como demonstrado, não é inédita. O assunto tem sido tratado desta forma por várias Constituições pretéritas e também entendimento jurisprudencial e doutrinário.
O que muda na Operação Lava-Jato?
Os Paladinos da Justiça não cansam de esbravejar que a decisão do Supremo Tribunal Federal provocará o fim da Operação Java Jato. Seria um déjà vu? Em meados de maio de 2014, quando o Ministro Teori Zavascki determinou que a Justiça Federal do Paraná enviasse ao STF todos os inquéritos e processos relativos ao caso, ouvimos idênticos apelos e algazarras de que seria o fim da Lava Jato.
De lá para cá, os julgamentos da Operação Lava Jato continuaram acontecendo, tanto na seara da justiça comum, quanto no STF àqueles que detêm foro privilegiado.
Ademais, o reconhecimento da competência da Justiça Eleitoral não incide sobre todos os casos em investigação ou julgamento, mas tão somente naqueles que tratam de suposta prática de crime comum conexo com o cometimento de crimes eleitorais.
O que a maioria da população desconhece talvez pela própria característica da justiça especializada é que os Magistrados da Justiça Eleitoral são juízes e desembargadores de carreira, assim como na Justiça Comum. Se não há tal desconfiança da República, ops, Justiça do Paraná, por que haveria de tê-la em relação a Justiça Eleitoral?
Para nós, afigura-se mais como uma tentativa de causar pânico na população, que, sem perceber a manobra alienatória, passa a agredir e subjugar a nossa mais alta Corte, em flagrante desrespeito à república e à democracia.
REFERÊNCIAS:
AVENA, Noberto. Processo Penal. 9ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
Escrito por:
Ana Carolina Ferrari
Advogada, atuante em Direito Penal no escritório Lustosa & Lima Sociedade de Advogados. Especialista em Ciências Criminais pela Rede LFG e Extensão em Compliance pela FGV. MBA em Gestão e Planejamento de Escritório de Advocacia. Associada ao Instituto de Estudos Avançados em Direito, Coordenadora do Núcleo de Compliance. Seu e-mail para contato é: anacarolinabcf.adv@gmail.com
Isabella Nascimento Macedo
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás UNI-Anhanguera, Conselheira Executiva do Instituto de Estudos Avançados em Direito - IEAD, integrante do núcleo de Direito Penal do IEAD.
Fonte: http://www.institutoead.org/