Medidas executivas atípicas: possibilidades e limites


Com a aprovação do (já não tão) novo Código de Processo Civil em 2015, instaurou-se uma nova era processual no Brasil. Não se tratou apenas da substituição de uma legislação por outra, mas verdadeiramente uma mudança de filosofia e da maneira de atuação da jurisdição civil em nosso país.
Visando atacar as vicissitudes que há anos tornavam o processo civil lento e ineficaz, cuidou o legislador de inserir mecanismos modernos de atuação prática, com o intuito deliberado de se atingir o resultado que efetivamente se espera do processo: a entrega do bem da vida ao seu titular, resolvendo a questão posta a juízo, superando, sempre que possível, as barreiras formais que se apresentam no curso processual.
Dentro desse pacote de novidades, passou despercebida, quando da aprovação do texto, a inserção do artigo 139 do Código, que, embora guarde correspondência com o artigo 125 da legislação processual revogada, incrementou a atividade jurisdicional, conferindo ao magistrado amplos poderes na condução processual, com o objetivo deliberado de dar-lhe mais autonomia na direção dos rumos do processo e, sem dúvidas, reduzir o tempo de tramitação das demandas.
Mas quais são os limites no exercício destes poderes? Pode o juiz, fundamentando sua conduta neste dispositivo, cercear direitos fundamentais (como a liberdade, por exemplo)? A conclusão deve ser extraída de uma interpretação panorâmica do sistema jurídico como um todo, recorrendo-se não só à parte geral do Código de Processo Civil, mas também ao texto constitucional, ponto de partida para a unificação harmônica do ordenamento jurídico.
DOS PRINCÍPIOS GERAIS QUE NORTEIAM A APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sem dúvidas, deve o exegeta partir da análise dos princípios gerais que orientam a atuação jurisdicional para tentar buscar as respostas necessárias ao questionamento proposto, muito porque os princípios cumprem esse papel de preencher as lacunas do sistema e dar o sentido necessário ao texto legal.
1.1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS À FUNÇÃO JURISDICIONAL
Há que se buscar na própria Constituição da República as diretrizes para o exercício da função jurisdicional como um todo, pois se trata da práxis de um dos Poderes do Estado, que, em um Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CF/88), não podem ser exercidos sem limites claros e objetivos.
E é perlustrando o texto da Constituição Federal que nos deparamos com os limites iniciais à atuação do magistrado, na qualidade de representante de um Poder: os Direitos e Garantias Fundamentais. Comumente associados à proteção do cidadão contra arbítrios praticados pelo Poder Executivo, tais garantias não podem deixar de serem observadas pelos outros Poderes estatais. Bem se sabe que os Direitos e Garantias Fundamentais não são absolutos, mas seu afastamento no caso concreto reclama fundamentação idônea, suficiente a justificar a ponderação e o balanceamento para que um Direito Fundamental seja preterido para a prevalência de outro.
Na lição de Gilmar Mendes e Paulo Branco (2017):
Tornou-se voz corrente na nossa família do Direito admitir que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. Tornou-se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, quando enfrentam outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais. (...)Não há, portanto, em princípio, que falar, entre nós, em direitos absolutos. Tanto outros direitos fundamentais como outros valores com sede constitucional podem limitá-los.
Conclui-se, então, que o Princípio da Legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da CF/88, há que ser aplicado ao magistrado no exercício de sua sagrada função jurisdicional. Qualquer determinação judicial terá seu conteúdo amparado em lei, portanto, sob pena de nulidade.
A Liberdade, também um valor protegido pelo caput do artigo 5º da CF/88, deve ser respeitada sempre que possível, somente podendo ser tolhida ou limitada por decisão judicial quando outro Direito Fundamental prevalecer no caso concreto.
Cabe menção, também, a vedação à prisão por dívidas (artigo 5º, inciso LXVII), que, trazendo uma visão humanista para o processo, proíbe que se aplique sanções corporais ao devedor para o cumprimento de obrigações em geral, recaindo somente sobre seu patrimônio a responsabilidade para tanto.
Por fim, a cláusula geral do Devido Processo Legal (artigo 5º, inciso LIV) orienta que não pode se privar o cidadão de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, devendo ser assegurado o contraditório e a ampla defesa ao interessado, com os meios e recursos a ela inerentes.
Do texto constitucional, portanto, em uma análise prima facie, percebe-se que existem limites claros e importantes à conduta do magistrado na condução do processo, que, por se consubstanciarem em Direitos e Garantias Fundamentais, impõem a superação de interpretações ou mesmo de legislação infraconstitucional que colidam com essa proteção.
1.2. DOS PRINCÍPIOS CONTIDOS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL QUE ORIENTAM A ATUAÇÃO JURISDICIONAL
No novo modelo de processo inaugurado com o CPC/2015, o processo passa a ser visto sob o filtro constitucional. Não se diga que sob a legislação de 1973 isso não ocorria, mas é que, com a promulgação do novo texto em tempos democráticos, a aproximação com a CF/88 é mais nítida e intensa.
Nesse contexto, o código de 2015 trouxe uma inédita parte geral, elencando, dos artigos 1º ao 12, princípios e normais gerais expressas que devem ser utilizadas para estabelecer a dinâmica processual forense. Cite-se, por se relacionar diretamente com o tema proposto, o artigo 8º, cuja redação abarca os Princípios da Razoabilidade, Legalidade, Publicidade, Eficiência e a Dignidade da Pessoa Humana.
Alexandre Câmara comenta a respeito (2017):
Também se faz expressa referência no art. 8o aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Estes são princípios cujo conteúdo ainda gera, na doutrina constitucional, tremenda controvérsia, sequer havendo consenso acerca de serem os termos razoabilidade e proporcionalidade sinônimos ou não. O STF tem invocado a razoabilidade e a proporcionalidade em diversas decisões, usualmente fazendo referência a eles como projeções, no plano substancial, do princípio do devido processo legal (substantive due process).
A citação à Legalidade e à Dignidade da Pessoa Humana é relevante, na medida em que trazem para o código garantias importantes, reforçando o que já era previsto na CF/88, mas compreendido muito mais como vinculação ao Poder Executivo em relação aos demais, pela experiência constitucional ao longo da história.
Repise-se que, inseridos na Parte Geral do código, tais premissas irradiam efeitos em todo o Processo Civil, inclusive no processo de execução, vinculando o magistrado a respeitar tais limites quando da adoção de medidas para efetivar a satisfação da obrigação buscada pelo credor.
2. ANÁLISE DO ARTIGO 139 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Feita a introdução principiológica acima, cabe examinar concretamente o dispositivo objeto de nosso estudo, visando harmonizá-lo com a orientação acima e dar-lhe densidade normativa.
2.1. MUDANÇAS SUBSTANCIAIS NOS PODERES DO JUIZ DO CÓDIGO DE 1973 PARA O DE 2015
Como mencionado na introdução deste texto, o Código de Processo Civil de 1973 tinha em seu corpo um dispositivo correspondente ao atual artigo 139 do Código de Processo Civil de 2015: era o artigo 125, que previa, em apenas 04 (quatro) incisos, os poderes do condutor do processo. Veja-se a redação do dispositivo:
Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:
I - assegurar às partes igualdade de tratamento;
II - velar pela rápida solução do litígio;
III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça;
IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.
O artigo 139, que se prestou a tratar do mesmo assunto no texto novo, ampliou para nada menos que 10 (DEZ) os poderes expressos do juiz, conferindo maior autonomia e depositando no magistrado a responsabilidade pela busca da efetiva entrega da tutela jurisdicional em tempo hábil. Veja-se:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
I - assegurar às partes igualdade de tratamento;
II - velar pela duração razoável do processo;
III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias;
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;
VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito;
VII - exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais;
VIII - determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso;
IX - determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais;
X - quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.
Parágrafo único. A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode ser determinada antes de encerrado o prazo regular.
Além disso, o inciso IV deste dispositivo foi redigido com técnica legislativa de cláusula aberta, dando margem para o preenchimento de seu sentido nos casos concretos, aumentando a vida útil do texto legal e evitando que se tornasse superado ou incompleto com a prática forense.
O problema é que, em tempos de ativismo judicial e confusão dos limites à atuação de cada um dos Poderes do Estado, decisões polêmicas passaram a surgir, supostamente fundamentadas neste inciso, o que obriga a academia e os operadores do Direito à reflexão. Trataremos disso no tópico seguinte.
2.2. O ARTIGO 139, INCISO IV, DO CPC, AUTORIZA O MAGISTRADO A SUSPENDER CNH E APREENDER PASSAPORTE PARA DAR EFICÁCIA A PROVIMENTO JURISDICIONAL?
Tornou-se nacionalmente conhecida a decisão proferida pelo juízo da 2ª Vara Cível do Foro Regional de Pinheiros, capital paulista, no âmbito do processo de execução 4001386- 13.2013.8.26.0011, em sede da qual a magistrada, fundamentando sua decisão no artigo 139, inciso VI, do Código de Processo Civil, determinou a suspensão da CNH Carteira Nacional de Habilitação e apreensão do passaporte do Executado, até o pagamento da dívida. Para a juíza, a lei processual autoriza qualquer medida atípica para forçar o cumprimento.
Cabe ressaltar, contudo, que o dispositivo mencionado não autoriza, de per si, a adoção de medidas tão invasivas sem a observância de parâmetros adequados. Primeiro, porque a norma está inserida no Capítulo I do Título IV do Código, que trata justamente dos Poderes, dos Deveres e da Responsabilidade do Juiz.
Ora, vê-se que este capítulo do código regulamenta não só poderes, mas também deveres e responsabilidade do juiz, denotando clara e inequívoca orientação de que o exercício de tais poderes se dê com critérios e limites. Resta claro, portanto, que a atuação do magistrado, nessa qualidade, é o primeiro fator limitador para a imposição de medidas executivas atípicas de forma ampla e genérica. Em outras palavras: o juiz pode muito, mas não pode tudo!
Outro ponto importante a ser considerado é que a característica de inércia da jurisdição impede que o juiz, em regra, defira alguma medida sem que haja pedido expresso da parte. Nesse contexto, o deferimento de qualquer medida executiva atípica reclama pedido expresso da parte, sob pena de violação da Imparcialidade do juízo. Ademais, não há autorização expressa no mencionado inciso IV do artigo 139 para ação jurisdicional de ofício.
A correlação com o objeto da demanda também é um importante fator de limitação, impondo que a medida aplicada seja condizente, material e proporcionalmente, com o crédito perseguido. A intensidade da restrição deve ser adequada ao bem jurídico protegido. Não se mostra razoável a suspensão da licença para dirigir, impingindo ao Devedor uma severa restrição a seu direito de ir e vir, para compeli-lo ao pagamento de poucas parcelas de condomínio em atraso, a título de exemplo.
Buscando filtrar a aplicação de tais medidas nos casos concretos, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem interessante precedente, em que busca inserir a utilização de medidas executivas atípicas em grau subsidiário, quando as demais técnicas tradicionais de expropriação patrimonial restarem frustradas. Veja-se a ementa do julgado:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. TÍTULO JUDICIAL. ADOÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS FUNDADAS NO ART. 139, IV, DO CPC/2015. NÃO CABIMENTO. EXISTÊNCIA DE MEDIDAS EXECUTIVAS TÍPICAS. CARÁTER SUBSIDIÁRIO DAQUELAS EM RELAÇÃO A ESTAS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. As medidas executivas fundadas no art. 139, IV, do CPC/2015, em razão de sua atipicidade, devem ser adotadas excepcionalmente, de forma subsidiária àquelas típicas já previstas no ordenamento jurídico. É dizer, só devem ser utilizadas após esgotados todos os meios tradicionais de execução, de forma subsidiária. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: AI 20175118420178260000 SP 2017511-84.2017.8.26.0000. Órgão Julgador 31ª Câmara de Direito Privado. Publicação 11/04/2017. Julgamento 11 de Abril de 2017. Relator Adilson de Araujo) (destaquei)
Na mesma linha da subsidiariedade, defende Alexandre Câmara (2017) que estas medidas podem ser aplicadas seja qual for a natureza da obrigação, tanto no procedimento destinado ao cumprimento das sentenças como na execução fundada em título extrajudicial, mas são subsidiárias às medidas executivas típicas, e sua aplicação depende da observância do princípio do contraditório. (grifei)
Complementa, aduzindo que:
Além disso, é preciso ter claro que a aplicação dessas medidas não pode ser vista como uma punição ao devedor inadimplente. São elas mecanismos destinados a viabilizar a satisfação do direito do credor, e nada mais. Por isso são inaceitáveis decisões que determinam a apreensão de passaporte do devedor (que ficaria, com isto, impedido de viajar a trabalho) ou a suspensão da inscrição do devedor no cadastro de pessoas físicas CPF , o que impediria o devedor de praticar atos corriqueiros no cotidiano das pessoas, como se inscrever em um concurso público ou fazer a declaração de imposto de renda.
De todo modo, não se pode perder de vista que na execução civil respondem os bens do devedor, presentes e futuros, pelo cumprimento da obrigação, ressalvas as (muitas) restrições legais, nos termos do que preleciona o artigo 789 do Código de Processo Civil. É dizer: dívida se paga com patrimônio, e não com medidas que incidam sobre a pessoa do Devedor.
Aliás, não se observando a prudência na aplicação de tais medidas como a suspensão de CNH e apreensão de passaporte, é provável que a sanção ultrapasse a pessoa do Devedor, atingindo seu núcleo familiar e pessoas que dele dependem economicamente, violando a pessoalidade que deve incidir na execução civil.
É fácil visualizar a situação na prática, em que o Devedor labore como motorista particular, vinculado a aplicativos de corrida, tirando daí o seu sustento familiar. A suspensão da CNH deste Devedor causará danos gravíssimos a terceiros não envoltos na lide, agredindo o fundamento da República, preconizado no artigo 1º, inciso III, da CF/88: a Dignidade da Pessoa Humana. Isso sem mencionar a flagrante violação do direito de ir e vir e da liberdade do exercício profissional, todas com assento constitucional.
Por todas essas considerações, conclui-se que é possível, de fato, a aplicação de medidas executivas atípicas na satisfação de crédito no processo civil, mas que tais atitudes possuem diversas restrições no ordenamento jurídico, principiando pelas próprias garantias constitucionais individuais, até os delineamentos dados pelo Código de Processo Civil.
Talvez a utilização sem medida desta ferramenta legal se dê em virtude da restrição exacerbada à penhorabilidade patrimonial do Devedor, que obriga o Credor a percorrer uma legítima via crucis até a satisfação de seu crédito, isso quando consegue atingir algum patrimônio passível de expropriação. A revisão do regime de impenhorabilidades no processo civil brasileiro é o caminho mais certo para o aumento da eficácia na satisfação de crédito, mas isso já é assunto para outro artigo.
Escrito por Caio Freitas, advogado associado ao GMPR Advogados S/S, especialista em Direito Civil e Processo Civil, atuante em Direito Civil, Empresarial e Administrativo.
REFERÊNCIAS
https://www.conjur.com.br/2016-set-27/paradoxo-corte-ampliacao-poderes-juiz-cpc-principio-legalidade
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 3ª Ed. São Paulo, Atlas, 2017.
Fonte: http://www.institutoead.org/