Skip directly to content

Jogos de azar, assim  abrangidos, o jogo do bicho e as máquinas eletrônicas traduzem condutas atípicas

19/11/2018 - 10:13


EMENTA


APELAÇÃO CRIMINAL. JOGOS DE AZAR. ATIPICIDADE. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA. Hipótese em que, como decorrência do princípio da intervenção mínima, não há espaço para a intervenção do Direito Penal. Necessidade de resguardar o direito penal, sabidamente a ultima ratio, para aquelas hipóteses em que o bem jurídico não pode ser protegido por outros meios menos gravosos, situação que claramente se desenha em relação aos jogos de azar, que tanto podem ser legalizados quanto combatidos por outros ramos do Direito, em especial o Administrativo, que bem se presta para combater o funcionamento de estabelecimentos comerciais ou o exercício de atividades que se ponham em desconformidade com a lei. RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71007835473, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, Julgado em 17/09/2018). (TJ-RS - RC: 71007835473 RS, Relator: Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, Data de Julgamento: 17/09/2018, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/11/2018)


ACÓRDÃO


Vistos, relatados e discutidos os autos.


Acordam os Juízes de Direito integrantes da Turma Recursal Criminal dos
Juizados Especiais Criminais do Estado do Rio Grande do Sul, à
unanimidade, em dar provimento ao recurso.


Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores Dr.
Edson Jorge Cechet (Presidente e Revisor) e Dr. Luis Gustavo Zanella Piccinin
.


Porto Alegre, 17 de setembro de 2018.


DRA. KEILA LISIANE KLOECKNER CATTA-PRETA,

Relatora.


RELATÓRIO


Trata-se de recurso de apelação interposto pela Defesa
contra decisão que condenou o réu como incurso nas sanções do artigo 50, do
Decreto-Lei 3.688/41 à pena de 04 (quatro) meses e 20 (vinte) dias de prisão
simples, a ser cumprido em regime semiaberto. Condenado, também, ao pagamento
de multa no valor de 30 (trinta) dias-multa, no valor de 1/30 (um trigésimo) do
salário mínimo.


Sustenta, em síntese, ausência de lesão ao bem jurídico
tutelado, bem como insuficiência probatória para que haja um juízo condenatório
do réu. 


Nas duas instâncias, manifesta-se o Ministério Público pelo desprovimento
do recurso.


VOTOS


Dra. Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta (RELATORA)


Conheço do recurso, pois cabível e tempestivo.


O entendimento pacificado desta Turma Recursal é no
sentido de que os jogos de azar, assim abrangidos, dentre outros, o jogo do
bicho e as máquinas eletrônicas conhecidas como caça-níquéis, traduzem condutas
atípicas. Vejamos:


A tipificação da conduta, como contravenção penal, é
trazida pelo art. 50 do Decreto-Lei 3.688/41,
verbis:


Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em
lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem
ele:


Pena –
prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de
réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de
decoração do local.

(...)


O parágrafo terceiro do art. 50 do citado decreto, a
Lei de Contravenções Penais, traz a definição dos chamados “jogos de azar”:


§ 3º Consideram-se,
jogos de azar:

  a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou
principalmente da sorte;

  b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou
de local onde sejam autorizadas;

  c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.


Já o Decreto-Lei nº 6.259/44 dispõe sobre a organização
do serviço de loteria no País, atribuindo a exploração à União e aos Estados da
Federação, devendo ser precedidas, as respectivas concessões, de concorrência
pública.


O aludido decreto-lei trata como condutas ilícitas
aquelas que não estejam sob a concessão governamental, assim definindo:


Art. 40.
Constitui jogo de azar passível de repressão penal, a loteria de qualquer
espécie não autorizada ou ratificada expressamente pelo Governo Federal.


Parágrafo único. Seja qual for
a sua denominação e processo de sorteio adotado, considera-se loteria toda
operação, jogo ou aposta para a obtenção de um prêmio em dinheiro ou em bens de
outra natureza, mediante colocação de bilhetes, listas, cupões, vales, papéis,
manuscritos, sinais, símbolos, ou qualquer outro meio de distribuição dos
números e designação dos jogadores ou apostadores.


Portanto, o que se percebe é que a mesma conduta,
dependendo de onde e por quem é explorada, é definida como conduta típica,
ilícita e antijurídica ou não, já que o fator sorte pode estar presente tanto
num como noutro ambiente, fazendo cair por terra a definição legal de jogos de
azar.


Visivelmente, o que está em jogo não é a proteção do
apostador, como forma de ser resguardado de gastos superiores aos seus ganhos,
ou dos bons costumes, bem jurídico apontado como tutelado por alguns
doutrinadores como Damásio de Jesus e Guilherme de Souza Nucci[1],
mas a proteção do Estado da sonegação fiscal, suprimindo-se a seara da
fiscalização administrativa.


Obviamente criminalizar a mesma conduta praticada em
ambientes diversos, dentro de uma mesma federação, pela falta de autorização
estatal para a exploração, é um verdadeiro excesso, já que a questão poderia
ser facilmente resolvida com a autuação do agente que não detém a autorização e
fechamento do respectivo estabelecimento no âmbito administrativo.


Vale ressaltar que a inconstitucionalidade da punição
ao apostador já vinha sendo reconhecida por esta Turma:


APELAÇÃO
CRIMINAL. PARTICIPAÇÃO EM JOGOS DE AZAR COMO APOSTADOR. ARTIGO 50, §2º DO
DECRETO-LEI Nº. 3.688/1941. MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO. DISPOSITIVO LEGAL NÃO
RECEPCIONADO. ATIPICIDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA. CONCESSÃO, DE
OFÍCIO, DE ORDEM DE HABEAS CORPUS AOS CORRÈUS, PORQUE IDÊNTICA A SITUAÇÃO
DESTES. Súmula vinculante n° 10 do STF. Mudança de orientação. Como a Turma Recursal
Criminal não se constitui em órgão fracionário de tribunal, mas sim em órgão da
justiça de 1º grau, com função, no microssistema do Juizado Especial Criminal,
típica de 2º grau, afigura-se possível o reconhecimento de
inconstitucionalidade em controle difuso. A punição do apostador não
se coaduna com o Estado de Democrático de Direito, por macular a liberdade
individual (art. 5°, X, da CF), pois a opção de participar do jogo, com todos
os seus reflexos, representa tão somente o exercício da liberdade individual.
Dispositivo legal que (art. 50, § 2º, da Lei das Contravenções Penais),
exclusivamente em relação a tal ponto, não foi recepcionado pela nova ordem
constitucional, daí advindo a atipicidade da conduta. Entendida como atípica a
conduta, a pendência da ação penal contra os corréus, em relação aos quais o
processo foi suspenso e cindido, autorizada está, por implicar, em relação a
ambos, que igualmente estão sendo processados pela condição de jogadores,
constrangimento ilegal, a concessão de "habeas corpus" de ofício.
RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71005420914, Turma Recursal Criminal,
Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 28/09/2015).


Além disso, o que se tem visto na prática é que a
exploração de tal atividade é realizada como fonte de renda de pequenos núcleos
familiares, comércios inexpressivos economicamente, com o intuito de ver
aumentada sua pequena renda. De qualquer sorte, com o fechamento do
estabelecimento, a punição, mais que a pena cominada pela lei do século
passado, apresenta-se configurada, com a privação dos ganhos e da fonte de
subsistência do agente infrator durante certo período, e tal não seria
diferente caso a penalidade administrativa fosse aplicada com o fechamento do
estabelecimento e cassação do alvará, o que, por si só, já inibiria a atividade
ilícita. Afora isso, vemos pequenos apostadores e empregados, que nada ameaçam
a paz social e os bons costumes, sendo processados criminalmente, com a prévia
mobilização da autoridade policial, a qual poderia estar se ocupando com crimes
de maior lesividade, sem falar no empenho de todo o aparato do Poder Judiciário
e gastos públicos que envolve tal mobilização.


Vale referir, ao cabo, que o discurso de que tal
atividade quase sempre é ligada a crimes mais graves não prospera, já que, caso
seja isso constatado, é ônus da acusação a respectiva prova, postulando a
aplicação da lei penal prevista para a conduta descrita na incoativa.


Nucci, quem gosto de citar por ser Mestre e Doutor em Processo Penal,
integrante do corpo docente de graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado)
da PUC-SP, e Desembargador da Seção Criminal do TJSP, portanto com visão
imparcial da matéria, pondera que ”não há
mais sentido em se manter vigente a contravenção do art. 50 desta Lei por
variadas razões. Em primeiro plano, invocando o princípio da intervenção
mínima, não há fundamento para o Estado interferir, valendo-se do Direito
Penal, na vida privada do cidadão que deseja aventurar-se em jogos de azar. O
correto seria regularizar e legalizar os jogos, afinal inúmeros são aqueles
patrocinados pelo próprio Estado, como loterias em geral. Em segundo lugar,
havendo a previsão da contravenção e inexistindo, ao mesmo tempo, punição
efetiva a todos que exploram esse tipo de jogo – e são vários – não há
eficiência para o Direito Penal, que somente se desmoraliza, gerando o
malfadado sentimento de impunidade”
.


Nesse contexto, abre-se espaço para a aplicação do
princípio da intervenção mínima, pois como pontua Callegari[2]
“Sendo o Direito Penal a última instância
de tutela do Direito (
ultima ratio), a que intervém
com maior ‘violência’ no âmbito social, deve-se permitir sua atuação somente
nos casos que envolvam agressões de extrema gravidade”
.


Há necessidade, pois, de resguardar o direito penal, sabidamente a ultima ratio, para aquelas hipóteses em
que o bem jurídico não pode ser protegido por outros meios menos gravosos,
situação que claramente se desenha em relação aos jogos de azar, que tanto
podem ser legalizados quanto combatidos por outros ramos do Direito, em
especial o Administrativo, que bem se presta para combater o funcionamento de
estabelecimentos comerciais ou o exercício de atividades que se ponham em
desconformidade com a lei.


Aqui, como decorrência do princípio da intervenção mínima, não há espaço
para a intervenção do Direito Penal.


Voto, pois, por dar provimento ao recurso a fim de absolver o réu, fulcro
no art. 386, III, do CPP.

Dr. Edson Jorge Cechet (PRESIDENTE E REVISOR) - De
acordo com o(a) Relator(a).

Dr. Luis Gustavo Zanella Piccinin - De
acordo com o(a) Relator(a).


DR. EDSON JORGE CECHET - Presidente - Recurso
Crime nº 71007835473, Comarca de
Caxias do Sul: "À UNANIMIDADE DERAM PROVIMENTO AO APELO."


Juízo de Origem: JUIZ ESP CRIM ADJUNTO A 2.VARA CRIMINAL
CAXIAS DO SUL - Comarca de Caxias do Sul


[1]  Damásio de Jesus, Lei das Contravenções
Penais Anotada, Saraiva, 12ª ed,, ps. 181 e 204.

Nucci, Guilherme de Souza, Leis Penais e Processuais
Penais Comentadas, RT, 5ª ed,, 2010, p. 214.

[2]
Callegari, André Luís, Teoria Geral do Delito e da Imputação Objetiva, Atlas,
3ª ed., 2014, p. 3.