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O empregado hipersuficiente no direito do trabalho

Letícia Marina da S. Moura
04/03/2021
Por longo decurso temporal, ordenamento jurídico brasileiro pautou-se pela sistemática da proteção, fundada na proteção do trabalhador enquanto parte hipossuficiente da relação laboral, ao menos até a Reforma Trabalhista trazida pela Lei n° 13.467/2017.

O Direito do Trabalho, desde seus primórdios, adota como critério fundamental orientador o princípio protetor, com o nítido propósito de garantir a equidade, nivelando as desigualdades existentes entre as partes processuais existentes em uma relação trabalhista.

 

Como bem detectou o doutrinador Luciano Martinez (2020)[1], as limitações ao exercício da autonomia privada constituíram as medidas pioneiras na busca do equilíbrio contratual entre os desiguais. Essas ações em comento, inclusive, teriam se tornado ainda mais evidentes a partir do século XIX, notadamente por força da luta de classes e para que o polo operário obtivesse a mínima possibilidade de desenvolvimento de qualquer liberdade contratual.

 

Por um longo decurso temporal, ordenamento jurídico brasileiro pautou-se nessa sistemática, fundada na proteção do trabalhador enquanto parte hipossuficiente da relação laboral, ao menos até a Reforma Trabalhista trazida pela Lei n° 13.467/2017.

 

A substancial alteração na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em vigência desde 11 de novembro de 2017, cria a figura do empregado hipersuficiente, conceito aplicado aos empregados portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, autorizando a livre estipulação pelas partes em relação aos seus direitos, desde que não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes[2].

 

Não obstante, o que se verifica na prática, é que os Tribunais pátrios não se restringiram ao texto da lei, ampliando ainda mais o conceito legislativo, possibilitando o enquadramento do obreiro na classificação mesmo quando o empregado não seja portador de diploma de nível superior, mas também nas hipóteses em que caracterizada a mitigação significativa da subordinação jurídica:

 

EMPREGADO HIPERSUFICIENTE. ART. 444, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. ROL EXEMPLIFICATIVO. O art. 444, parágrafo único, da CLT estipula uma categoria de empregado hipersuficiente, mas não exclui outras formas de hipersuficiência, como se interpreta de seu próprio texto. No caso, a parte autora é atleta de relevante influência social, tendo tido plena condição de ser assessorado, por ocasião da celebração do distrato. Assim, mesmo que não seja portador de diploma de nível superior, ele será hipersuficiente quando caracterizada a mitigação significativa da subordinação jurídica. Por consequência, é válida a celebração da cláusula que afasta a aplicação da multa do art. 477, §8º, da CLT.

(TRT-3 - RO: 00106360720195030113 MG 0010636-07.2019.5.03.0113, Relator: Des. Gisele de Cassia VD Macedo, Data de Julgamento: 13/10/2020, Segunda Turma, Data de Publicação: 14/10/2020. DEJT/TRT3/Cad. Jud. Página 320. Boletim: Sim.)

(Sem grifo no original)

 

Dentre os principais impactos gerados pela mudança, destaca-se a autonomia contratual entre as partes e a possibilidade da aplicação da arbitragem nas relações trabalhistas, o que não foi benquisto pela doutrina moderna, conforme será exposto nos tópicos a seguir.

 

Autonomia Contratual

 

Sob a sistemática trabalhista vigente, os empregados considerados hipersuficientes estão revestidos das condições legais para serem considerados capazes de negociar as cláusulas de seu contrato diretamente com o empregador. Por certo, conforme interpretação do parágrafo único, art. 444 da CLT, podem ser objeto da livre estipulação entre as partes:

 

Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

 

I - pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

II - banco de horas anual; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

IV - adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei no 13.189, de 19 de novembro de 2015; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

V - plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

VI - regulamento empresarial; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

VII - representante dos trabalhadores no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

VIII - teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

IX - remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

X - modalidade de registro de jornada de trabalho; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

XI - troca do dia de feriado; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

XII - enquadramento do grau de insalubridade; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

XIV - prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

XV - participação nos lucros ou resultados da empresa. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)”

(Artigo 611-A, Consolidação das Leis do Trabalho)

 

Em contraste, Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2017)[3] defende que, segundo exigência constitucional, apenas por meio de convenção coletiva ou acordo coletivo, com a participação do sindicato da categoria profissional em negociação coletiva, é que se permite flexibilizar certos direitos trabalhistas de forma menos benéfica ao empregado. Assim, à luz da visão defendida pelo doutrinador, a autonomia da vontade no âmbito trabalhista, notadamente no plano individual, não pode ser exercida sem limites, sob risco de prejuízo aos direitos fundamentais e determinações legais de ordem pública.

 

Possibilidade de arbitragem

 

Como se sabe, a arbitragem, de modo geral, não é compatível com a solução dos conflitos individuais trabalhistas, notadamente em virtude da natureza indisponível dos direitos debatidos nesta seara, contrariando, porquanto o disposto pelo artigo 1º da Lei nº 9.307/1996; art. 876 da CLT e art. 114 da Constituição Federal. Senão, vejamos:

 

"Art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis."

(Artigo 1°, Lei nº 9.307/1996)

 

"Art. 876. As decisões passadas em julgado ou das quais não tenha havido recurso com efeito suspensivo; os acordos, quando não cumpridos; os termos de ajuste de conduta firmados perante o Ministério Público do Trabalho e os termos de conciliação firmados perante as Comissões de Conciliação Prévia serão executada pela forma estabelecida neste Capítulo".

(Art. 876, Consolidação das Leis do Trabalho)

 

"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;"

(Art. 114, Constituição Federal)

 

Por sua vez, mesmo com a expressa previsão dos referidos artigos, a Lei n° 13.467/2017 instituiu o novel art. 507-A da CLT, o qual prevê que “nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem”.

 

Nitidamente correlacionada ao tópico anterior, a ideia do artigo supradito é de que o empregado hipersuficiente exerceria com maior liberdade sua manifestação de vontade diante da relação de emprego, inclusive no momento de formação das cláusulas estabelecidas em seu contrato de trabalho, ainda que sujeito à subordinação jurídica. Não obstante, a validade do procedimento arbitral está sujeita, além da pactuação regular com os requisitos expostos acima, que tal procedimento seja iniciado por iniciativa de tal empregado ou, na hipótese da iniciativa ser do empregador, que o empregado concorde expressamente.

 

Caso estejam ausentes tais requisitos, inválida a cláusula compromissória para arbitragem, o procedimento arbitral e, por consequência, a sentença arbitral que por ventura seja decorrente do procedimento.

 

Escrito por:

 

Letícia Marina da S. Moura é jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG), graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás - Uni-Goiás e especialização em curso em Direito Empresarial pela Faculdade Legale. Membro do núcleo de Direito Empresarial, Falimentar e Recuperacional (NEmp) do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).

 


[1] MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho – 11ª Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

 

[2] Art. 444. As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.                     (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

 

[3] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma trabalhista – 2ª ed. rev. – Salvador: JusPodivm, 2017.

Letícia Marina da S. Moura (@le.moura7) é jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG), graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Goiás - Uni-Goiás e especialização em curso em Direito Empresarial pela Faculdade Legale. Membro do núcleo de Direito Empresarial, Falimentar e Recuperacional (NEmp) do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).